terça-feira, 5 de novembro de 2019

Refri de laranja para quem tem sede de sonhos e outras epifanias que cabem numa fritadeira




“Algumas pessoas só conseguem dormir com algum peso sobre o corpo, eu era assim”. Foi o que eu escutei enquanto adormecia na rodoviária inebriado por um estranho cheiro de pastel, suave, como se o céu usasse uma fritadeira nimbo para comemorar o aniversário de algum anjo. “Vem que tem salgadinho”  diria São Pedro, ou algum outro porteiro, ou segurança – parece que tem vários – no paraíso. “Quando eu acreditava no amor, queria que alguém pesasse sobre mim, para poder dormir”. Quando alguém lhe diz que não acredita no amor é curioso como prontamente nasce uma vontade de amá-la, seduzi-la, só para provar estar enganada. Como se o amor fosse uma última linha intransponível, do tipo que não se pode desacreditar. “E o lance não é o amor, saca? Eu só queria poder dormir mesmo”. O cheiro de pastel dançava a vinte centímetros de distância dos olhos dela. Eu fiquei com minha boca entreaberta, estática, enquanto todos os planetas giravam. Senti um fio de baba tocar o meu joelho. Usava uma bermuda ridícula, com a estampa de um esquilo surfista. O esquilo usava óculos escuros. “Você é maluca”. Foi o que eu lhe disse. Ela se levantou, tremendo, e derrubou um pouco de refrigerante de laranja sobre a mesa plástica. “Ainda bem que eu bebi quase tudo”. “Sim, isso é uma verdade, você quase bebeu tudo mesmo”. Ela me deu um longo olhar, como quem usa uma calculadora científica e todos os seus enigmáticos botões para chegar a um resultado, um resultado esperado de uma pergunta previsível, um cálculo se eu seria um peso de papel, ou coisa equivalente, para que ela colocasse sobre si todas as noites afim de ter um bom sono. Mas, pelo seu olhar, pela maneira como seu pequeno nariz respirava o ar inebriado de fritura e pela maneira como ela coçava com suas unhas verdes os cotovelos, uma coçadinha simultânea, eu percebi que cheguei perto, mas, não alcancei o coeficiente necessário para ser um peso. “Você me lembra um cachorro que meu tio tinha, ele perdeu uma perna, mas continuava correndo atrás dos carros”. Nesse momento, por alguma lei da física ou pela gravidade distorcida através do caderno de anotações do dono do boteco, senti uma perna de plástico da minha cadeira se partir como uma promessa de amor. Quando eu me levantei, ela não estava mais lá.
Quase todas as noites são escuras no verão dos teus olhos – estava escrito na camiseta de um cobrador que eu gostaria de conhecer. Quando eu entrei no meu ônibus, não havia ninguém. O motorista me perguntou: “Vai para onde?”. Mas aquilo não era um táxi, era um ônibus. O esquilo mexeu seus óculos escuros, pegou no volante e disse “Hoje não é, meu amigo. Aceita uma balinha?”.
Eu desci do ônibus. Sou um homem simples. Não uso ácido e não ando de Uber. Pedi um pastel de carne acompanhado de um refri de laranja e fiz um pensamento forte para um dia você voltar, para que a gente pudesse um dia conversar e que nossas vidas estivessem em um momento que quiséssemos ser livres, talvez, compartilhando o mesmo espaço em um avião caindo e não, essa mesa, essa espera, esses relógios e estações que são sempre os mesmos e que só servem para assistir partidas, sempre, partidas e mais partidas.
Sem uma alma para olhar pela janela enquanto se vai – seria essa a frase de alguém que acredita no amor?
Pastel é a segunda melhor coisa do mundo.

05.11.2019

domingo, 15 de setembro de 2019

Ínfimo pesar




*



Se você tocar nos olhos de um catador de lixo, talvez ele sussurre, quase como um zumbido, que o grande problema – e ele vai fazer uma expressão torta com a boca, como se fosse problemática a escolha desta última palavra – que o grande problema de carregar coisas leves é você nunca saber quando está carregando o suficiente. E o problema todo reside, como um cisto que uma criança imagina se vai sair sozinho, na palavra – outra vez a boca retorcida – suficiente. Quanto? Aquele homem é capaz de carregar oito vezes o seu peso. Quando criança, com ou sem cisto, li uma revista na sala de espera do pediatra que dizia que as formigas são capazes de carregar várias vezes o seu peso. Talvez oito vezes ou trinta vezes, não lembro e não parece justo trair a falta da memória, então, que as coisas fiquem tortas e vagas mas que ao menos respeitem suas linhas temporais nessa chuva fria que cai em junho. Aquele homem, por sua vez, respeitando sua vez, era um inseto notável capaz de carregar muitas vezes o peso do seu corpo, e, escolhendo materiais de maior valia – uma avaliação obtusa, estranha para o entendimento dos insetos que não dispunham dos mesmos sistemas de valoração, ao menos na data em que se escreve estas linhas, mas, aquele inseto, que também era um sonho, era capaz de saber com a fé inabalável dos cães que escutam o barulho único de seus donos, que os materiais mais leves eram mais valorizados. E os materiais mais leves ocupavam mais espaço. E por ocupar mais espaço, pareciam ainda maiores. Então aquele inseto que era capaz de efetivamente carregar oito ou trinta vezes o tamanho do seu corpo, visualmente passava uma impressão ainda mais fantástica, como se fosse capaz de carregar centenas de vezes, centelhas de gêneses, o tamanho, do seu corpo. Ele era capaz de tudo isso e assim procedia, sem maiores alvoroços, todos os dias.
Mas se o pensamento inoportuno, como aquele que traz a luz, surgisse, então, a ordem de tudo era rapidamente perdida: É o suficiente? Quanto, qual o grama, específico, muda a postura de “posso carregar ainda mais” para “assim está bem”.
Este ponto de inflexão parece pedir por desdobramentos, explicações, analogias, metáforas. Mas eu não vou fazer isso, pois eu sou uma cigarra muda que trabalha amanhã, cedo. Então, uma alternativa à má vontade de explicar as coisas é se tornar mais leve que o ar. Este processo que exige algumas polegadas de alquimia, especialmente fumo e inconsciência da história da América Latina e também, moderadamente, do esquecimento de um já apagado romance que ocorre na Primavera de Praga, pode fazer com que você se sinta mais leve que o ar e denso como o plástico. Neste ponto, fantasmagórico, certas combinações com o catador de lixo podem ocorrer, como a generosa oferta de ser colocado junto na sua caçamba de ferro e transportado no topo da pilha.
“Mas eu não posso carregar você”.
“Senhor catador, eu sou mais leve que o ar”.
Então ele te leva. E ainda, em cima de você, mais doze latas de alumínio.
Parece ser o suficiente, mas, ainda é difícil dizer.
Você quer beijá-lo, mas não tem boca.
Você quer lavá-lo, mas não tem mãos.
Ainda é possível falar sobre o tempo.
Sim.
Sobre, o, tempo.
Um cachorro caminha ao lado da caçamba, ele rosna para você, no timbre do seu dono – é um estranho sussurro. Ele te odeia, mas ninguém pode saber isso.


15/09/2019 
Tiago André Vargas

sábado, 31 de agosto de 2019

Espalha





*



Teus cabelos cheios de estrelas
O confete e o nada que ficou
De um carnaval do universo

Para nascer um mundo em novembro
Nós dois
Já somos tão habitáveis
Como um abraço no chuveiro em um dia
Frio

Ainda não sabemos como as coisas nascem
Mas temos inferências de como as coisas morrem
E nessa grande escuridão que é existir
Nosso toque
Se amplifica

“Você pode me pentear?”

Eu coloco as estrelas com cuidado sobre a cama
Você sorri e
Espalha


31.08.2019
Tiago André Vargas

domingo, 11 de agosto de 2019

jar.dim



*




Estávamos em um jardim
Onde a separação das flores era feita com
Inopinados fios elétricos
E você me explicava o motivo daquilo com
Olhos de rocio tão esclarecidos do que era
O amor
Com a elegante soberba do entendimento do mundo
As flores
Você dizia
Que não crescem da forma esperada
Devem ser abaladas com uma grande corrente elétrica
O que era uma espécie de antítese do amor
Que você tão bem sabia
Só crescer de uma forma não esperada
Na eletricidade amena
De uma cama morna
Na manhã de um domingo ruidoso
Enquanto eu espreito teu espreguiço na janela
Em busca de algum sol
Como todos nós

Eu achei estranha essa prática da horticultura
Mas por não saber o que era o amor
Eu sempre acreditei em você

11.08.2019 
Tiago André Vargas

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