“Algumas
pessoas só conseguem dormir com algum peso sobre o corpo, eu era assim”. Foi o
que eu escutei enquanto adormecia na rodoviária inebriado por um estranho
cheiro de pastel, suave, como se o céu usasse uma fritadeira nimbo para
comemorar o aniversário de algum anjo. “Vem que tem salgadinho” diria São Pedro, ou algum outro porteiro, ou
segurança – parece que tem vários – no paraíso. “Quando eu acreditava no amor,
queria que alguém pesasse sobre mim, para poder dormir”. Quando alguém lhe diz
que não acredita no amor é curioso como prontamente nasce uma vontade de amá-la,
seduzi-la, só para provar estar enganada. Como se o amor fosse uma última linha
intransponível, do tipo que não se pode desacreditar. “E o lance não é o amor,
saca? Eu só queria poder dormir mesmo”. O cheiro de pastel dançava a vinte
centímetros de distância dos olhos dela. Eu fiquei com minha boca entreaberta,
estática, enquanto todos os planetas giravam. Senti um fio de baba tocar o meu
joelho. Usava uma bermuda ridícula, com a estampa de um esquilo surfista. O
esquilo usava óculos escuros. “Você é maluca”. Foi o que eu lhe disse. Ela se
levantou, tremendo, e derrubou um pouco de refrigerante de laranja sobre a mesa
plástica. “Ainda bem que eu bebi quase tudo”. “Sim, isso é uma verdade, você
quase bebeu tudo mesmo”. Ela me deu um longo olhar, como quem usa uma
calculadora científica e todos os seus enigmáticos botões para chegar a um
resultado, um resultado esperado de uma pergunta previsível, um cálculo se eu
seria um peso de papel, ou coisa equivalente, para que ela colocasse sobre si
todas as noites afim de ter um bom sono. Mas, pelo seu olhar, pela maneira como
seu pequeno nariz respirava o ar inebriado de fritura e pela maneira como ela
coçava com suas unhas verdes os cotovelos, uma coçadinha simultânea, eu percebi
que cheguei perto, mas, não alcancei o coeficiente necessário para ser um peso.
“Você me lembra um cachorro que meu tio tinha, ele perdeu uma perna, mas
continuava correndo atrás dos carros”. Nesse momento, por alguma lei da física
ou pela gravidade distorcida através do caderno de anotações do dono do boteco, senti uma perna de plástico da minha cadeira se partir como uma
promessa de amor. Quando eu me levantei, ela não estava mais lá.
Quase
todas as noites são escuras no verão dos teus olhos – estava escrito na
camiseta de um cobrador que eu gostaria de conhecer. Quando eu entrei no meu
ônibus, não havia ninguém. O motorista me perguntou: “Vai para onde?”. Mas
aquilo não era um táxi, era um ônibus. O esquilo mexeu seus óculos escuros,
pegou no volante e disse “Hoje não é, meu amigo. Aceita uma balinha?”.
Eu
desci do ônibus. Sou um homem simples. Não uso ácido e não ando de Uber. Pedi
um pastel de carne acompanhado de um refri de laranja e fiz um pensamento forte
para um dia você voltar, para que a gente pudesse um dia conversar e que nossas
vidas estivessem em um momento que quiséssemos ser livres, talvez,
compartilhando o mesmo espaço em um avião caindo e não, essa mesa, essa espera,
esses relógios e estações que são sempre os mesmos e que só servem para
assistir partidas, sempre, partidas e mais partidas.
Sem
uma alma para olhar pela janela enquanto se vai – seria essa a frase de alguém
que acredita no amor?
Pastel
é a segunda melhor coisa do mundo.
05.11.2019