No
meio do fio da madrugada uma pichação em espanhol acorda a alma latina, sonâmbula,
sentada na latrina. Dá vontade de gritar com eloquência uma língua desconhecida,
dá vontade de chupar com magnificência uma língua desconhecida. Depois passa.
Eu passei; o muro também. Do mesmo jeito que passei por Montevidéu e tatuei o
cavalo de Artigas na minha coxa. Esquerda. A tatuadora a fez enquanto olhava o Río de La Plata. Estávamos em um prédio
alto, que olhava para o Río de La Plata.
Já as pessoas que estavam no prédio alto olhavam para as pessoas que estavam na
Rambla, e as pessoas que estavam na Rambla olhavam para o Río de La Plata acreditando que olhavam
para o mar.
O
Río de La Plata olhava para dentro de
si. Ele via o mar.
Eu
me lembro de Galeano dizer que Montevidéu é uma cidade que ainda se pode
respirar, e que respirar é importante. Talvez previsse a sua morte, a
complicação com o câncer de pulmão. Não é raro saber o que nos matará. O
incomum, talvez, seja afastar-se pela mão da sabedoria, e não da dor. Quem
parava, e olhava para o rio pensando que olhava para o mar, ou ainda, quem
olhava para o rio sabendo que olhava para o rio, na verdade do fundo da água
morna da cachola da existência: olhava para si. É um efeito lindo, profundo,
tão metafísico quanto cortar um pimentão amarelo e nascer o dedilhado de um
violão triste: olhar o horizonte. A linha do mar e do céu. A linha da pichação
na parede. Uma cidade vizinha do mar, ou de um rio que parece ser mar, é um
convite à reflexão, bem como os gritos da mais imparcial das imprensas (validados
pela cólera da transgressão) grudados nos muros de quem não tem interesse, ou
dinheiro, em novas tintas para suprimi-los. Que gritem, enquanto pensarem ter
voz. Que façam ondas, enquanto pensarem ser mar.
Os
poros engoliam o sol de semblante sereno, com seus oito raios agudos e oito
ondulantes. Um vento forte batia na água e fazia carinho nos cabelos. E se é
para ter uma alma, que ela seja assim.
Tiago André Vargas
22.01.2016
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Montevidéu, janeiro de 2016. |