sábado, 26 de maio de 2012

Carona


Não que ele deixasse o cabelo crescer
Apenas não mais impedia
Não que ele houvesse desistido da vida
Precisava abandonar-se para ser

E ser, parecia ser a única saída
Que no fim, se sabia
Tratava-se de outra entrada
Findaram-se as portas
Secaram-se as mágoas
O polegar ereto na estrada

E a estrada, parecia ser a única saída

Um caminhão azul pintando o céu de negro
Fumaça mais linda nunca foi vista
Parou e apontou para a caçamba
Fundiu os olhos íntegros do motorista
Com dois movimentos entrou na carroceria

E ali, estava a vida

Entre pedaços de lenha quase podres
Que aqueceriam uma menina com luvas de lã
Lambido por cachorro manso que nunca passou fome
E o vento vaidoso perfumado por maçãs

A fumaça negra subia
Parecia estragar algo inteligível
Porém nome não era posto
Inocência
Os dedos gastos
Um espiral negro se desfazendo
E no fim apenas o cabelo comprido
Dançando no vento
Em uma carona sem destino traçando o pensamento
Era fim de tarde, olhos fechados, cabelos e vento
Isso bastava

Bastaria?
Autoria de Tiago André Vargas
Fotografia de Raluca.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Foto dobrada


Respirou fundo
Embriagou-se com aroma de gasolina
Sentiu fome
Direcionou-se a pastelaria
Nenhum par de olhos o recepcionou
Sentou-se
Preocupou-se em ninguém olhar
Não queria ver rostos
Faces
Todas diferentes, mas, o que se faz com isso?
Abaixou a aba do boné e pediu um café preto
Sem açúcar
Detestava açúcar
Uma farsa doce bem-vinda
Preferia a verdade amarga
Sorriu de leve
Sabia que o próximo momento seria doce
Sincera docemente
E doce seria somente este até o final do dia
E doce seria somente este até o final da vida
Do bolso da camisa retirou uma fotografia
Havia o rosto de uma menina
Abraçando o sorriso de uma mulher
Mãe e filha
Palavras que não devem ser escritas sozinhas
E o pai?
Este aguarda pelo café
Que lhe recorda que a vida é amarga
Terminando avisa que deve ir para a lida
E logo segurando a bomba de gasolina
Saúda o cliente perguntando tão triste
Qualquer coisa a respeito do clima
Este nada fala
Nada se fala
O combustível termina
O motorista se vai
Carrega consigo o bom dia
Do homem dos maus dias
Que a cada abastecida leva a mão a camisa
E sente dobrada a fotografia
Bem como seu coração

Completa?

Pode completar.
Autoria de Tiago André Vargas
Fotografia de Eleanor Rigby.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Os desgraçados beijam batom


E a vida escorre
Como criança em escorregador
Coloca os pés na areia
Pensa
Acabou

Mas as meninas rezam
Ou passam batom
Nunca rezam passando batom
Porque a vida escorre
Motivos sem ou com

Para as que unem as mãos nada escrevo
Pois elas não poderão ler-me
Já as que estalam os lábios vermelhos
Apenas outro desgraçado desaconselho

O príncipe nunca virou chato
Em tempo algum deixou de sê-lo
Você?
Ah, você
Apenas precisava de um vestido de anseio
Precisava se tornar uma menina má
Aprender a morder o lábio
Treinar bocas no espelho
Bocas em apáticos beijos
Bocas no asfalto
Treinar
Subir no salto
E a boca nada mais fala
Apenas gesticula
E o príncipe agora chora
O príncipe que compra e vende
Mercadante de almas e dentes
Vingando-se por fim malevolente
É que o príncipe apesar do céu, não tem paz
Visto que jamais foderá
Da maneira que somente um homem fodido é capaz

Cíclicas meninas más
Quantas cores escorrem para se pintar meia parede
De um quarto
Vazio

Autoria de Tiago André Vargas
Fotografia de Autumn.

sábado, 12 de maio de 2012

Carbono puro


Os teus olhos podem ver tudo
Os teus olhos refletem mudos
Meus olhos já sem escudos
Meus olhos largos desnudos

E eu preciso

Como a mulher de meia idade carregando o filho cego
Como a mulher de meia idade avisando a cada degrau
Como o homem de meia idade sozinho em cada gesto
Como o homem de meia idade vestido à funeral

Os meus olhos grafite
Rabiscando vida gasta em folha nova
Para que você suscite
Me queime por amor e não por glória

Os teus olhos diamante
Refletem-me quando te vejo
Me percebo
Adiante
Sobre brilhos de inocente arpejo

Existem olhares que indeferem
Ainda os que ferem
Sobre prece
Os outros nada querem
Os riscos
A fuligem
E as máscaras para esconder o bruto
De quem ama o absurdo
Daquele que fere o vagabundo
No fim falso testemunho
O mundo no mundo findo
Numa súplica de vento forte
De quem ama e lança a sorte
Os olhos e os dedos
Para as lágrimas e apertos
O carbono e o diamante
Diferentes por um olhar


Esconda bem fundo dentro de ti
Escolha a quem mostrar
A cinza por cinza suplica
Enquanto os diamantes ficam entrementes
Esperando o extraordinário desabrochar
Autoria de Tiago André Vargas
Fotografia de Bronson Thurler.

sábado, 5 de maio de 2012

O gato o copo o amor


Vocês são jovens. Mas eu não. Eu não preciso de um heterônimo chamado Álvaro detentor de 500 e poucos anos de próprio descobrimento para ter respaldo. Eu não quero erguer meu dedo. Nem ter a minha vez.
Se sair tudo bem, só feche a porta para não fugir meu gato. Ele é completamente estulto, um momento de liberdade e se joga na frente dos carros. Você acredita em uma coisa destas? Nem eu. Mas é assim que ele é.
Faz muito tempo desde que eu bebi minha esperança em copos trincados olhando para baixo se nenhum caco visitaria minha goela. Você bebe. Joga o copo contra a parede e observa um véu de pequenos vidros dançarem por uma fração de segundo, depois são os barulhos cintilantes, pequenos diamantes transviados e o silêncio novamente impera.
Para quê fazer isso? Perguntaria alguém de espírito maternal.
Eu não sei.
Talvez tenha me cansado de carregar líquidos de um lado para o outro, recipiente 1, recipiente 2, da garrafa pro copo, do copo pra boca, da boca para o belo quadro explicativo sobre o funcionamento do sistema urinário exemplificado por um homem entediado.
E no fim tudo para no vaso, ou assim esperamos nós, homens, enfadonhos PORÉM organizados.

Foi em um dia destes, quando um demônio engarrafado que não quis ser vomitado tomou conta de mim.
Eu deixei Álvaro fugir.
Álvaro é o nome do meu gato.
Assisti escorado no vão da porta aberta o felino alucinado correr até a rua e se jogar na frente de uma camionete que o levou junto consigo.
A camionete tinha um protetor frontal à frente do pára-choque. Foi ali que ele ficou encaixado como uma peça de jogo educativo. A camionete não freou, nem se quer buzinou. Nada.
Então Álvaro estava morto.
Então meu copo estava quebrado.
Movido pela comoção do álcool eu me pus a chorar percebendo fatidicamente que meu amor não era afinal tão metódico, não, eu não era o professor explicando o sistema urinário.
Eu amava meu copo, assim como amava meu gato.
Amava o fato de poder amá-los. Amava o fato de possuí-los, usufruindo cabalmente de toda sua dispensabilidade, agora, sem eles, não mais dispensáveis.
Eis o amor.
Eis as pequenas coisas que impedem a destruição.
Impedem a reconstrução.
Permitem apenas ser.
Eis.
O copo. O gato. O amor.
Autoria de Tiago André Vargas
Fotografia de Marco Freire.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Desígnios cadavéricos


Lucy.
Chuquinhas.
Parada em fronte a televisão assistindo ao desenho que ainda não sabia ser seu preferido, a jovem menina sorriu.
Com um salto se pós de pé.
Correu na direção do pai que lia o jornal com uma larga xícara vermelha de café pousada sobre a mesa. Esta parecia ser a única coisa verdadeiramente limpa naquele local.
- Pai! Eu sei qual presente quero no dia das crianças!
Desceu o jornal de forma idônea ao seu olhar que a fitava por cima da armação dos óculos há décadas quebrada na extremidade esquerda. Disse:
- Estamos em abril...
- E quanto é o dia das crianças?
- Outubro.
- E falta muito para outubro?
- Falta.
- Podemos antecipar?
- Não.
Silêncio. Curiosidade.
- O que você vai querer?
- Eu vou querer uma caveira papai!
Engasgou-se com o café. Cuspiu um pouco sobre a mesa branca, uma mancha marrom. Feia. Lucy sabia que era feio cuspir, ainda mais marrom.
- O que te faz querer uma caveira menina doida?!
- O desenho que assisti agora. Teve um cavalo que caiu num líquido estranho e virou um grande esqueleto, bem branco. Depois mostrava sua caveira de cavalo relinchando, achei que seria bonito ter uma destas na entrada do meu quarto, assim como nos filmes de bang-bang que tem uma caveira na entrada da cidade. Sabe?
- Meu deus...
- Aqueles filmes de bang-bang que tu gosta. Sabe? Deve ser barata uma caveira, pois todo mundo que entra na cidade poderia roubar ela, mas ninguém faz.
- Talvez porque as pessoas tivessem medo!
- Do que?
Extremamente irritadiço, posto em contato com as petulantes perguntas da filha finalizou aquele processo educacional com um estrondoso grito:
- Você precisa se crismar logo! Suma daqui, vá! Peça para tua mãe te ensinar a rezar uma ave-maria ao invés de ficar assistindo estes desenhos de merda. Vamos! Suma!
Enquanto Lucy segurava uma de suas chuquinhas e apertava os olhos para suprimir as lágrimas, voltou-se para trás e viu seu pai alimentar o belo canário engaiolado ao lado da sua cadeira na ponta da mesa.
O único ser da casa detentor de apreço.
Ela e sua mãe nada mais eram que dispendiosos animais mantidos a muito custo e sacrifício.
O canário não. Eram apenas algumas sementes. E ele cantava.
Quanto a aquelas duas, o que faziam por ele?
Realidade.
Lucy correu com seus pequenos sapatos até o terreno baldio ao lado de casa, percebendo-se totalmente sozinha sentou-se sobre uma lata de tinta vazia e se pós a chorar.
Depois de alguns instantes escondida atrás das palmas de suas mãos resolveu olhar novamente o mundo ao seu redor.
Um gato branco sentado exatamente em frente bocejava. Como se estivesse entediado com sua soluçante tétrica demonstração de dor.
- Mimi! Vem cá vem?
Como se toda dor tivesse esvaído ela gesticulava com os dedos finos para que o belo, porém esquelético gato viesse em sua direção.
Ele foi.
Lucy então agarrou-o com escancarado demoníaco semblante e levou-o contra a vontade junto consigo, este muito relutante tentava fugir sem sucesso. Novamente os pequenos sapatos corriam velozes, agora de volta para casa.
Abriu o portão. Segurava-o em frente ao peito como uma arma que se empunha com as duas mãos. Sabia que sua mãe estava no mercado, mas e seu pai? Precisava ter certeza que ele não estava na cozinha para realizar seu malévolo desígnio.
Espiou com metade do rosto e a cozinha estava vazia.
Ainda carregando o gato que agora não mais se debatia, aparentemente confortado com sua sorte, foi até o quarto do pai e percebeu que lá ele estava olhando alguma revista de capa estampada com uma mulher de poucas vestes.
Perfeito.
Correu para a cozinha. Fechou portas e janelas. Ciente que o gato não teria como escapar, soltou-o.
Com passos cautelosos, mas decididos, abriu a gaiola e pegou a leve custo o canário. Segurou-o pelo pescoço, obrigou seu minúsculo crânio a lhe responder o olhar. Lucy correu a língua dos dentes. O gato fez o mesmo.
Ocorreu.
- Papai! Aconteceu uma tragédia!
Seu pai nada respondeu.
- O canário foi morto!
Muito agitado e de calças mal postas o velho homem abriu a porta da cozinha e avistou a janela aberta, um gato branco descarnado lambendo os beiços e a gaiola sobre o chão quebrada. Penas amarelas. Mais nada.
Sobre veemente ataque de fúria olhou ao seu redor a procura de algo que lhe servisse como arma, sem nada encontrar correu na direção do gato para chutar-lhe até o inferno, mas este, matreiro pelos anos comendo lixo na calçada, sabia o que fazer.
O gato branco saltou pela janela correndo sobre o telhado externo.
O velho homem caiu sobre a gaiola e se pôs a chorar.
Lucy olhava fixamente para uma lata de achocolatado sobre a pia.

Fim do ato.

Quando outubro chegou Lucy ganhou de sua mãe uma boneca que falava eu te amo, boneca que custou 10 reais, os outros 10 que recebera do marido para comprar o maldito presente ela gastou com uma garrafa de vinho que, evidentemente, bebeu sozinha. Mas aquele não era o seu presente. Contando somente com o amor daquela boneca que quebrou depois de falar 8 vezes que lhe amava, Lucy recorreu para a lata de achocolatado que ficava dentro do fundo falso do armário.
Destampou-a.
Uma pequena e minúscula caveira de extremidade pontiaguda se revelou.
Branca como a paz.
Branca como a esperança.
Colocou-a de frente para a porta trancada do quarto, assim como nas cidades fantasmas, para que os desconhecidos ímpetos sombrios soubessem o que lhes aguardava se entrassem em seu território.
Dormia como um anjo, sem nunca receber boa noite.
Boa noite.
Autoria de Tiago André Vargas
Fotografia de Melissa.

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“Algumas pessoas só conseguem dormir com algum peso sobre o corpo, eu era assim”. Foi o que eu escutei enquanto adormecia na rodoviá...