quinta-feira, 14 de julho de 2016

Silente



Quando o dia se mostra cinza
E os besouros negros copulam sem fazer barulho
É que eu me lembro melhor de você
Como agora

A aurora do passado é uma tatuagem no baixo-ventre
Na escuridão dos pelos púbicos, um estetoscópio nostálgico adentra
Inspira (já fui a segunda criança no balanço mais alto)
Expira (o rosto da madrasta em silêncio, o sotaque da novela de época conversando com demônios que respondiam no corredor)

As agulhas nunca encontraram minhas veias
Tampouco você
O besouro goza na armadura da memória
Voa mais leve, mais rápido, explode em um vidro qualquer

Eu escuto o barulho e olho pela janela
O dia está cinza. É você?

Tiago André Vargas

14.07.2016

Acervo pessoal.


sábado, 2 de julho de 2016

Os frangos chegam ao posto de gasolina e pedem para completar com aditivada



Vou dizer que é assim mesmo, enquanto palito os dentes e arroto uma andorinha. Na gastronomia, há de se saber, só comemos quem não finge ser livre. Se frango soubesse voar, não comeríamos frango. Se porco soubesse voar, não… ah, você entendeu, não preciso dar três exemplos, isso não é uma piada. VÁ PARA O INFERNO, HUMORISTA. Dá trabalho o cultivo dos livres, essa é a verdade. Sempre fica uma carninha no beco dos molares, é gostoso enfiar o palito lá no fundo, sangrar a gengiva, uma chupadinha não seminal, semi-essencial, há quem diga que se pode beber 2 litros de sangue antes de enjoar. O lado sombrio é úmido e mofa com a força dos segundos a nossa quintessência. Vou dizer que é assim mesmo, queremos tanto ser limpos que sangramos despercebidamente, na falta de um sentimento mais sincero, é bom sentir nossa segundessência escorrer. JAMÓN. POLLO. Enfia mostarda nessa merda. Não, espera, é maionese. São dois amantes que apertam saches de maionese sobre peitos de frango. É isso que é, sabe. Dois frangos amantes foram mortos e seus peitos assados para dois homens enamorados os comerem enquanto falam sobre a possibilidade do Nacional avançar na Libertadores da América. Sabe, na Europa eles têm a Liga dos Campeões. Nós temos a Libertadores. Eles já são vencedores, nós ainda procuramos alguma liberdade. As palavras dizem muito, principalmente quando querem dizer outra coisa. Se dois homens podem falar sobre futebol na maturidade da tarde devem possuir alguma liberdade, por isso comem os frangos, que não possuem nem a liga dos que são campeões nem a liga dos que querem ser livres, nem colocam maionese sobre seus milhos, nem voam, nem amam. Fomos educados para pensar a individualidade, nunca a estrutura, por isso, se o frango é morto sem nunca ter “vivido a vida”, sem nunca ter “encontrado algo para amar e morrer para”, logo queremos chamá-lo de filhos das putas, no plural mesmo, e arranque de uma vez seus coraçõezinhos e meta-os no espeto. Os homens partem, deixam seus lanches pela metade sobre a mesa. Esbanjar é o jeito borbulhante de ser livre. OS PÁSSAROS VÊEM E COMEM OS PEITOS DOS FRANGOS. Se sabiam que eram frangos? Claro que sabiam. Comiam com gosto, com aquele sabor imperial que escorre bico adentro, degustando a maciez da carne nascida para ser cortada. Está tudo escrito nas estrelas, se tivesse feito astronomia ao invés de Wizard você saberia. “Sabe, é muito bom comer frango”. Disse o pássaro number one. “Sim, frangotes preguiçosos, burros, que não sabem voar”. Disse o pássaro number two. “Tic, tic, tic”. Bicou o pássaro number one. “Tá afim de ver a semifinal da taça pássaros voadores da Oceania?”. Perguntou o pássaro number two. “Já era”. Disse o pássaro number one.
The birds were flying high, very high, when a bullet killed both.
“Nossa King Number Five! Você matou os dois passarinhos com um tiro só!”. Susan exclama. Seu silicone está em temperatura ambiente. Susan poderia ser a má musa de uma boa música (artistas são tão degradantes e previsíveis, arranquem-lhes os violões e absolutamente nada sobra). Deus pergunta: “Por que você matou os bichinhos?”. King Number Five responde: “Melhor que comer o fraco é matar o livre”. Todos que assistem o Killing Show da vida batem palmas pela resposta de King Number Five. Deus desliga a televisão e enfia os pés nas pantufas de um jeito cabreiro. Quando pensou em fazer este filme, nunca imaginou que trabalharia com atores tão ruins.
“As verdades são ilusões que esquecemos”. Eu disse para Deus.


Apêndice:
“Você é bom, meu filho. Consegue ser vegetariano, adotar um gato e ficar em paz com sua companheira?”. “Eu gosto muito de frango”. “Mas você é perfeito para o papel que eu estou pensando”. “Eu não posso comer um frango vez por outra? Não precisa ser todo o dia…”. “Não”. Deus é imperioso, percebe-se nas entrelinhas. Nas estrelinhas também. Mas aí entra novamente a astrologia e… “Eu já não como mais mamíferos”. “Não me enrola, é vegetariano. Ovo e leite eu até libero”. “Não consigo”. “Porra. Vou ligar para o Emilio Echevarría então”. “Ele é vegetariano?”. “Não sei. Mas eu gosto dele”. “Eu também. Em amores perros, foi divino”. Deus me olhou com compaixão. Esse tipo de elo não acontece todo dia. “Tudo bem, tudo bem. Mas é um frango por semana! Acho que consigo fazer de você uma estrela”.


Tiago André Vargas
02.07.16


Fotografia tirada em um posto de gasolina em janeiro de 2016 em montevidéu. Pássaros terminam o lanche do casal que sentava ao lado.


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