terça-feira, 29 de agosto de 2017

Cavalos azuis e quatro aporias






“Eu mudei com o tempo, eu juro”. Seus braços amarrados a uma nogueira, a nuca raspando o tronco da árvore, o cheiro de uma casca, de outra casca, uma nuvem de cascas ao longe e o rápido cálculo da probabilidade de ser atingida pela torrente de mínimas crostas, o dorso nu de um inseto e o desejo incontrolável de balbuciar decassílabos. Ele limpa seus óculos. Ser um anfitrião na Grécia era mais simples que em São Petersburgo, disso ninguém discorda, mas agora aqui estamos e precisamos fazer algo a respeito. “Você criou o mundo, mas não eu”. Ele sabia. O que era virar um touro e raptar Europa comparado ao ato de se prostrar diante o desconhecido, das frutas de retina que escorriam do lamento da incompreensão e que o deixava em estado de aporia. “Eu sou ele, eu gozei o mundo”. Por certo. A sentença derradeira, o desespero da soberba, a queda dos anjos, a confissão do fracasso. Ela sorriu. Ele consentiu. “Sim, as vezes isso acontece”. Agora seria necessário vencer, esmagar, subornar montanhas e mudar os registros da história para que as cantilenas fossem narradas em falso falsete. “Primeiro inventamos a coisa”. Por certo. Por certo. “Depois buscamos significado”. A questão era que havia algum prazer em estar amarrada à nogueira, especialmente por não ter cordas, e, em fato, vibrar como uma. Tudo era uma questão de escolher a punição. Ele, quando tinha sua magnificência dobrada pelo espírito incontrolável e inusitado de um mortal era benevolente: deixava que o castigo fosse escolhido pelo errante e depois inventava uma sofisticada anedota como justificação. Não que precisasse justificar coisa alguma, tudo não passa de uma casca, mas, os talheres não foram inventados para serem postos no jardim. “Eu quero ser um cavalo azul”. Invejou-a. Quando inventou a história do roubo de Europa, não teria sido melhor ter escolhido um cavalo? Na verdade, os chifres eram importantes para que ela se segurasse durante a fuga. Claro, era necessário fugir rápido. Mas, quanto à cor? Deveria ter escolhido alguma cor quente, evidenciaria o seu poder divino. E, azul provavelmente teria sido a melhor opção. Com um gesto levemente penoso lançou o seu corpo em direção ao mar e presenteando-a com uma lágrima de fogo no peito assistiu-a com admiração cavalgando em disparada oceano adentro.  “Ela é especial, eu a amo”. Ela ouviu, ela só podia ouvir decassílabos e vibrar com a fratura dos meses durante a reminiscência da congestão dos sentimentos turvos de um amor imoral. A maioria esmagadora dos homens durante os milênios transcorridos morreram sem nunca ver um desses cavalos azuis. Era só um capricho, só uma casca, algum nó, um sentimento confuso. Era só a criação do mundo, feita assim, por acaso, como um macaco que descobre o orgasmo e logo depois olha para os lados, assustado, mas, estando só no universo, lhe cabe aguardar que o esperma faça a necessária negação do criador para girar a roda fastidiosa do mundo através dos anais das bananeiras, cachos de dores, algum potássio e uma linda casca, escorregadia, indecifrável. “O touro foi bom, mas, azul era a cor. Sempre foi”.

29/08/2017
Tiago André Vargas



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