terça-feira, 27 de setembro de 2011

Sóbrio


A festa acabou. A música parou subitamente e uma abelha se alojou em nossos cérebros provocando um eterno zumbido envolto de silêncio. Nossas entranhas cheiram nicotina. Caminhamos sobre um barco em leve movimento, errantes pelo amor à tequila. E tudo faz sentido. Completo sentido, como um débil que paira sua mente em algum plano mórbido e desiste de pensar. Puxa a tomada. A boca aberta e o sorriso arqueado olhando para o nada... Ver graça de desenhos animados que passam sem som. E tudo faz sentido.
Então tentamos conversar, tentamos dançar, desistimos de tudo e vamos para qualquer lugar fora desse barco. Minha casa ou a sua? Não sabia que você tinha uma tatuagem. Tudo fica tão quente, tão lascivo e tudo faz tanto sentido! Mas a água gélida não tarda a bater no corpo quase morno para afogar-mo-nos em lacônica alegria.
Então comete-se o irreversível pecado de fechar os olhos, uma noite bem dormida sem sonhos... E a escuridão acabou. O dia chegou. Você abre as pálpebras com relativo esforço e nada mais faz sentido.
Você fez isso?
Não era eu. Não éramos nós. Eram apenas gravações de estúdio para um filme futuro que estará em cartaz nas nossas mentes enquanto apontamos para todas as insanidades com ar saudosista. “Se lembra de quando...” Como o passado é belo no futuro.
O presente não passa de um uma refeição gordurosa lutando para sair do nosso corpo.

Autoria de Tiago André Vargas

Foto encontrada aqui.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Todo final triste depende de um início feliz



Talvez ela não consiga mais parar de chorar, não... Talvez não. Mas o que significa toda essa corrente de lágrimas que se deram as mãos e agora descem pela tua face, fadigadas ao subirem pela austera maçã do rosto para depois saltarem rumo ao nada? Talvez elas possuam uma mensagem, alguma do tipo inconsistente, como um suicídio sem bilhete deixado para trás.
Uma mensagem irrelevante, tal qual pronunciar “Eu te avisei”. Avisos que não são seguidos não devem ser feitos, porém as lágrimas vão mais longe, este caldo de alma que jorra pelos olhos pode alcançar patamares abissais justamente por representar a felicidade que fora perdida.
Portanto chorar agora, sofrer neste momento, representa em equivalência a felicidade que fora perdida. Quanto mais correr pelos teus olhos, em legítima e igual proporção, foram mais dentes no teu sorriso de outrora.
Oscilar é viver.

Autoria de Tiago André Vargas

Foto encontrada aqui.


segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Não conte. Não me conte.



Um, dois, três
Vejam os pequenos dedos inocentes orgulhosos por contar
Quatro, cinco, seis
Impeçam a puritana criança de continuar

Pois a mesma é demasiada jovem para perceber
A crueldade que existe no símbolo criado em suas mãos
A detentora da simples opaca bondade não irá querer
Ser mais uma neste mundo de números sem razão

Talvez tudo que possa ser contado
Simplesmente não deva ser feito
Pois enquanto estamos a mensurar algo
Deixamos de fazer outro em seu tempo

Bois, porcos, escravos, marque-os.
Corrupção, sonegação, impostos, apure-os.
Assassinatos, enchentes, acidentes, noticie-os.
Aquilo, isto e também o outro. Compre-os.

No fim não estamos a contar uma história repetida?
Enumerando tudo e a todos de forma contínua
Notas de desempenho, notas sem música percebida
Números registrados, gráficos montados, escalas de falsas mentiras

O que os números deviam dizer a respeito disso tudo?
Que logicamente é irrelevante contar o mundo
Você de 39 anos, 20 dias, 14 horas, 8 minutos e 1 segundo
Chegou o tempo não contado pedindo o rever do assunto

Esqueça quantos dias faltam para o final de semana
Esqueça quantas pessoas lhe prenderam um grito na garganta
Esqueça o dinheiro que falta para comprar um pacote de esperança
Esqueça de quantificar a vida dessa forma mundana

Eu queria que a criança não soubesse quantos aninhos ela tem
Que ela fosse si própria, inquebrantável e absoluta
Guiando-se pelo amor afastando a lógica com desdém
Enérgica em distinta passional forma de conduta

Eu queria um mundo pouco codificado
De menos ter
Eu queria um mundo apaixonado
De mais ser

Autoria de Tiago André Vargas

Foto encontrada aqui.

domingo, 4 de setembro de 2011

Estar-se na fossa



Saí com uma pá velha apoiada sobre o ombro enquanto a lua tentava inutilmente refletir sua imagem na haste, mas esta estava levemente forrada de cimento ainda de seu último laboro... 20 ou 30 anos atrás.
O que faz um homem sair por campos soturnos na calada da noite acompanhado de uma pá?
Bem, as palavras são o que dizem.
Você tinha que ter os lábios tão espessos? Os abraços tão cálidos? O sorriso tão afável? Sim, você tinha. Nossa história haveria de correr tão estúpida e banal subjugando um ao outro e principalmente a nós próprios? Essa pergunta, tão prolixa quanto fingir-se mascando chicle, eu não consigo responder.
Mas não tento entender. Estou com a pá sobre os ombros.
Então, não conseguindo compreender, resolver, praticar o desapego e por fim, constando que todo meu modesto estoque de entorpecentes legalizados estava acabado, me senti desamparado. Sem nem a leal companhia de um copo. Foi quando me percebi na fossa.
Cansado de fazer caretas com a boca para conter um choro que parecia eminente, resolvi entreter a minha mente com qualquer coisa. Trabalho braçal haveria de ajudar. Mexer o corpo, desligar o cérebro e mandar endorfina.
Poucas atividades me vieram e aquela coisa de estar Na fossa parecia insistir em permanecer em meus pensamentos. Então, compilando ambas, cheguei onde estou agora. Dentro de um pequeno bosque em minha propriedade olhando para uma terra escura.
Cavei meu amigo. Finquei aquela pá como se estivesse a cravá-la em todos os meus erros, arranquei-os dali e depois os joguei para trás. Percebi então que eles não eram poucos... Verifiquei por fim que eles eram inúmeros e quando finalmente cheguei ao final daquela excursão reflexiva constatei que o buraco estava extremamente fundo, maior que uma cova, quem sabe o quanto fiquei ali a cavar e bem na verdade, pouco importava.
Minha fossa estava pronta.
Então você, perspicaz amigo, indagará que uma fossa impreterivelmente precisa ter merda. Sim, estás certo, afinal de contas é isso que a torna uma fossa.
Esta problemática assolou minha mente por um momento, então sorrindo a resolvi como um aluno destro: Entrei em minha fossa. Completei-a. Através de mim lhe trouxe a essência.
Olhando para a lua dentro daquele buraco fiz com que todas as minhas lembranças, todos os meus erros, todas as minhas mágoas inaproveitáveis, fétidas e inescrupulosas trepassem com minha impotência diante de um passado sem volta e de um presente de merda.
Não resolvi nada.
Não mudei coisa alguma. 
Mas por um momento compreendi o que era estar em uma fossa.


Autoria de Tiago André Vargas

 
 Foto encontrada aqui.

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