Aos quatorze recebeu
um caderno de recordação. Perguntas enumeradas e respostas compartilhadas. Sempre
é imprudência escrever algo seu a quem não é teu.
Não temos ninguém, nem o Sipróprio.
Ela parou naquela
pergunta. Pergunta quatorze. Leu as respostas anteriores.
14. Em que lugar você
deseja encontrar o seu amor?
A. pulou aquela
pergunta.
A. não gostava de
pular perguntas.
N. sentado aos fundos
olhando para a porta. O café seco no fundo da xícara é a curva de um rio lamacento
que carrega o tempo e com ele um conselho absconso. N. gostava de olhar para
portas. Portas são pessoas. Pessoas, dentre tantas coisas, esperança. N. gostava
de olhar para a esperança.
A porta se abriu.
Um velho casaco roxo junto
com o guarda-chuva reluzente e as botas pretas e os jeans surrados e o cabelo
molhado carregavam uma mulher. O rosto dela oferecia tamanha ataraxia que N.
tocou a xícara pois necessitava segurar-se em algo. Apesar da pele morena,
estava pálida. Uma mulher foi abraçá-la. No abraço, ela olhou para N. sobre os
ombros de quem a consolava. Grandes olhos, N. pensou. Além. Olhos famulentos.
N. sorriu e ao perceber, sorria para ela. No findar do abraço ela caminhou em
sua direção desfazendo-se do guarda-chuva e do casaco.
- Não me desaponte –
Ela disse.
- Então não fale
comigo – N. disse.
Ela sorriu olhando
para baixo. N. poderia facilmente amar uma mulher que sorrisse olhando para
baixo.
- Qual é o seu nome? –
N. perguntou.
- A.
- E se pudesse
escolher seu nome?
- Eu posso escolher
meu nome.
- E então?
- V. e você?
- Meu nome ou se eu
pudesse escolher?
- Seu nome.
- N.
- E se pudesse
escolher?
- N.
- Você parece feliz.
- Parece cocaína, mas
é só tristeza. Minha felicidade é uma paráfrase da felicidade de outra pessoa.
A. fez um gesto para
a garçonete pedindo dois cafés.
- Tristeza?
- Tristeza. Parecida
com a sua.
- Minha tristeza vem
de alguma esperança.
- Você é mais que uma
porta, A.
- Por que não me
chama de V.?
- Prefiro o que você
é, não o que gostaria de ser.
- Sou uma mulher de
vinte e oito anos que há quatorze anos não sabia responder a pergunta quatorze
de um questionário infantil. Hoje – agradeceu a garçonete que lhe trazia o café
– por estar segurando um café nas mãos e ter você nos olhos, diria que sempre desejei
conhecer o amor da minha vida em uma cafeteria.
- Clichê.
Intelectualmente mórbido clichê. E lindo.
A. sorriu.
- Preciso admitir que
sempre desejei uma mulher que entrasse na minha vida com seu guarda-chuva
molhado sem pedir licença, o embalo das palavras escorregadias e brutalmente
sinceras como as voltas dos teus cabelos.
- Acho que amo você.
- Desde quando?
- Desde agora.
- Acabei de ver um
filme, saltou no meu colo a seguinte frase: “Nada distancia as pessoas mais do
que amor e sexo. Porquê isso acontece, eu nunca compreendi”.
- Eu acho que amo
você – insistiu A.
- A., você merece
algo melhor que o amor.
- Um beijo?
- Beijo é sexo sem x.
- O que me dará
então?
- Nada. O que pode
ser tudo.
- Faça um filho
comigo e depois me deixe. Eu quero algo seu para sempre.
- Tenho medo A..
- Você não parece ter
medo.
- Meu medo de ter
medo não me deixa ter medo.
- Você precisa ter
medo, mais do que amor.
- Fala isso
novamente.
- Não.
- Eu preciso.
- Você precisa ter
medo, mais do que amor.
N. certificou-se que
as xícaras estavam vazias e virou a mesa jogando seu corpo sobre A.. Caíram
sobre muitas coisas, inclusive o amor.
N. trapaceava
beijando A. com os olhos abertos. Necessário notar, ver. Homens gostam de ver. O
cabelo ondulado sobre a porcelana quebrada, a toalha amarela no chão, podia
sentir o olhar de reprovação e medo dos demais sobre suas costas enquanto A.
alisava-as com seus dedos sem esmalte.
A. terminou de
responder o caderno de recordação e voltou para a questão quatorze. A. não
gostava de pular perguntas.
14. Em que lugar você
deseja encontrar o seu amor?
A. abaixou sua cabeça
e sorriu.
No medo.
Tiago André Vargas