quinta-feira, 28 de julho de 2011

Encaixando lembrança


Eis o velho quebra-cabeça
Do homem arando o chão
Eis minha velha tormenta
Segurando a peça na mão

Neste simplório passatempo
Sigo sempre aquela dica
Dada pelo falecido tio Bento
“Comece pelas coloridas”

Portanto começo pelo colono
Separado monto o boi preto judiado
Depois vem o arado velho e torto
E assim os dois estão juntados

A terra vermelha é a mais difícil
Várias peças tenho que testar
No fim sempre vale o sacrifício
Ao ver a imagem se formar

Por fim encaixo a última peça
No meu coração invade alegria
Não por ter alcançado a meta
E sim pela realizada lisonjearia

É que este quebra-cabeça
De peças gastas pelos dedos
A muito tempo me foi dado
Pelo querido e finado tio Bento

E assim nas tardes de chuva grossa
Onde não se trabalha pelo mau tempo
Espalho as peças cheias de memória
E de tanta coisa por fim me lembro

Autoria de Tiago André Vargas

Foto encontrada aqui.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Março sem tinta


Era como em março transcrever um rascunho
Tirar letras repudiadas de um papel sujo
Pô-las em folha límpida durante o interlúnio
E na lua nova constatar o infortúnio

Somente um homem lia seus feitos
Preferia a reclusa, era o seu jeito
Mas este o fazia com devoto almejo
Acompanhando a própria mão no tracejo

Feliz assim o era, sozinho em companhia de si
Alguns diziam que era impossível viver assim
Alguns apenas roubavam o que crescia em seu jardim
Mas a maioria não sabia que alguém morava ali

Mas que tristeza alvejou o velho poeta de letra torta
Quando o mês de março sem tinta bateu-lhe a porta
E o contínuo escritor parecia ter a mente morta
Como uma faca velha que ninguém ousa jogar fora
Mas que ninguém escolhe pois nada mais corta

E durante o mês de março sem tinta
O velho escritor por fim nada mais tinha
Pois na exatidão de quem nada escrevia
Residia também o leitor que nada mais lia

E assim ficou, na mórbida batalha de quem nada espera
Até que em tarde cor de sépia, próximo à janela
De pronto suas mãos obedeceram à tormenta ideia
De espiar o que há tanto tempo, indiferente, lhe cerca

O mundo não era diferente e nem poderia
Na calçada de mangueira empunhada a mesma vizinha
Nos garotos com a bola sem gomos a mesma alegria
O cão deitado ao sol causando a mesma empatia

Indiferente e sem pressa a janela fechou
O papel judiado pela caneta sem tinta amassou
E na folha virgem novamente se encontrou
Mas o que será que na mesma ele escrevia?

Atravessaria dias de sol cheio e noites de dilúvio
Olharia nos olhos de mulheres sem causar repúdio
Teria 22 anos e um futuro moribundo
Seria o dono do cão que tanto brilha no sol vagabundo

Escreva velho poeta, não importa qual o gosto
Escreva vendo, ou não, outros rostos
Mergulhe fundo a mão dentro deste poço
E busque algo que seja desprezado e precioso

Autoria de Tiago André Vargas


Foto encontrada aqui.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Um brinde para quem não pode amar



Felicitações a todos que sofrem por não amar.
Um brinde a todos que possuem o coração oco como uma oca abandonada. A todos que gritam para o próprio peito e escutam um eco!

Oi?!
Oi...
Oi...
Oi...

Um brinde forte o suficiente para quebrarmos nossas taças cheias de simbolismo em homenagem a todos que escutam “Eu te amo” e bóiam na culpa do falso e mecânico “Eu também”.
Cumprimentos regados a socos e pontapés para todos que ficam parados, estáticos, esperando o gordo arcanjo lhe dar uma flechada, ou um raio de paixão que lhe parta e nada, nada acontece.
Um sincero brinde a todos que nasceram com a luz sobre os olhos. A todas as mentes inteligíveis capazes de perceberem a estupidez meta-física do amor. A conclusão fatídica e sem volta.
Sim! Um brinde! Pois se tornar esperto o suficiente para assoprar toda essa neblina cor de rosa chamada amor é se tornar estúpido o suficiente para dizimar a mais completa busca da felicidade e, tudo que sobra, cabe num copo. Saúde.


Autoria de Tiago André Vargas

Foto encontrada aqui.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Ó vida, fruta podre



Infância.
Caminha ao lado do celeiro o menino de roupa velha com remendo em um joelho. Caminha o menino, chutando pequenas pedras que surgem em seu caminho, fantasiando gols marcados em campeonatos que nunca existirão. Caminha sozinho o menino a espelho da própria humanidade.
Solitário, desleixado, suas roupas em berrante desarmonia. Seu coração calmo como um aquário sem peixes. Assim caminha o menino, assim o pensa que faz. Limita-se a erguer o braço e tocar com a mão a grade do celeiro enquanto passa, produzindo algum som impreciso que aos seus ouvidos era belo.
A grade acabou, a mão no ar pairou e o silêncio se fez. Silêncio confuso que brotava no seu dedo anestesiado.
Caminhou mais um pouco e distraído quase pisou em uma fruta. Uma fruta podre. Uma fruta podre como a vida.

A vida não é lânguida como uma fruta madura, nem repulsiva como a fruta verde. A vida é uma fruta podre. Uma laranja em meio ao capim alto revelando seu brilhante amarelo. Você a pega do solo, gira entre os dedos e percebe do outro lado seu bolor azulado. Do que adianta sua beleza se está podre não é mesmo? Bem, é preciso ter fome.
É preciso ter fome de viver para colocar os dentes um pouco antes à casca mofada e abocanhar tudo que nela há de bom. Fome o suficiente para fazer seu corpo tremer.

O garoto olha para a laranja, nota que está no chão e passa por ela.
Sem fome você passa pela vida. Um pé após o outro. Passou.


Autoria de Tiago André Vargas

Foto encontrada aqui.

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“Algumas pessoas só conseguem dormir com algum peso sobre o corpo, eu era assim”. Foi o que eu escutei enquanto adormecia na rodoviá...