domingo, 15 de setembro de 2019

Ínfimo pesar




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Se você tocar nos olhos de um catador de lixo, talvez ele sussurre, quase como um zumbido, que o grande problema – e ele vai fazer uma expressão torta com a boca, como se fosse problemática a escolha desta última palavra – que o grande problema de carregar coisas leves é você nunca saber quando está carregando o suficiente. E o problema todo reside, como um cisto que uma criança imagina se vai sair sozinho, na palavra – outra vez a boca retorcida – suficiente. Quanto? Aquele homem é capaz de carregar oito vezes o seu peso. Quando criança, com ou sem cisto, li uma revista na sala de espera do pediatra que dizia que as formigas são capazes de carregar várias vezes o seu peso. Talvez oito vezes ou trinta vezes, não lembro e não parece justo trair a falta da memória, então, que as coisas fiquem tortas e vagas mas que ao menos respeitem suas linhas temporais nessa chuva fria que cai em junho. Aquele homem, por sua vez, respeitando sua vez, era um inseto notável capaz de carregar muitas vezes o peso do seu corpo, e, escolhendo materiais de maior valia – uma avaliação obtusa, estranha para o entendimento dos insetos que não dispunham dos mesmos sistemas de valoração, ao menos na data em que se escreve estas linhas, mas, aquele inseto, que também era um sonho, era capaz de saber com a fé inabalável dos cães que escutam o barulho único de seus donos, que os materiais mais leves eram mais valorizados. E os materiais mais leves ocupavam mais espaço. E por ocupar mais espaço, pareciam ainda maiores. Então aquele inseto que era capaz de efetivamente carregar oito ou trinta vezes o tamanho do seu corpo, visualmente passava uma impressão ainda mais fantástica, como se fosse capaz de carregar centenas de vezes, centelhas de gêneses, o tamanho, do seu corpo. Ele era capaz de tudo isso e assim procedia, sem maiores alvoroços, todos os dias.
Mas se o pensamento inoportuno, como aquele que traz a luz, surgisse, então, a ordem de tudo era rapidamente perdida: É o suficiente? Quanto, qual o grama, específico, muda a postura de “posso carregar ainda mais” para “assim está bem”.
Este ponto de inflexão parece pedir por desdobramentos, explicações, analogias, metáforas. Mas eu não vou fazer isso, pois eu sou uma cigarra muda que trabalha amanhã, cedo. Então, uma alternativa à má vontade de explicar as coisas é se tornar mais leve que o ar. Este processo que exige algumas polegadas de alquimia, especialmente fumo e inconsciência da história da América Latina e também, moderadamente, do esquecimento de um já apagado romance que ocorre na Primavera de Praga, pode fazer com que você se sinta mais leve que o ar e denso como o plástico. Neste ponto, fantasmagórico, certas combinações com o catador de lixo podem ocorrer, como a generosa oferta de ser colocado junto na sua caçamba de ferro e transportado no topo da pilha.
“Mas eu não posso carregar você”.
“Senhor catador, eu sou mais leve que o ar”.
Então ele te leva. E ainda, em cima de você, mais doze latas de alumínio.
Parece ser o suficiente, mas, ainda é difícil dizer.
Você quer beijá-lo, mas não tem boca.
Você quer lavá-lo, mas não tem mãos.
Ainda é possível falar sobre o tempo.
Sim.
Sobre, o, tempo.
Um cachorro caminha ao lado da caçamba, ele rosna para você, no timbre do seu dono – é um estranho sussurro. Ele te odeia, mas ninguém pode saber isso.


15/09/2019 
Tiago André Vargas

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