No
Coração do País (1977). Romance do escritor sul-africano
John Maxwell Coetzee. Breve transcrição para falhar (sem ludibriar) o
esquecimento:
237.
Verões
e invernos vão e retornam. Como passam tão velozes ou quantos passaram não sei
dizer, posto que não me ocorreu, há muito tempo, começar a fazer marcas numa
vara nem rabiscos na parede nem a escrever um diário de boa renegada. Mas o
tempo fluiu incessantemente, e eu sou de fato uma velha malvada e louca, com o
dorso arqueado e o nariz adunco e os dedos nodosos. Talvez me engane ao
descrever o tempo como um rio a correr de infinito a infinito, levando-me
consigo como uma rolha ou um graveto; ou talvez, tendo corrido na superfície, o
tempo seguiu subterraneamente por certo período e depois tornou a emergir por
motivos para sempre secretos para mim, e agora corre outra vez à luz, e eu sigo
com ele e posso ser ouvida novamente, após tantos verões e invernos nas
entranhas da terra, durante as quais as palavras devem ter prosseguido (pois
onde eu estaria se se houvessem detido?), mas prosseguido sem deixar vestígio,
sem memória. Ou talvez não exista tempo, talvez me equivoque ao conceber meu
meio como temporal, talvez só haja espaço, e eu, uma mancha de luz a
movimentar-se errante de um ponto a outro do espaço, a saltar anos num
instante, ora assustada criança num canto da sala de aula, ora velha decrépita
de dedos nodosos, o que não deixa de ser possível – minha mente é receptiva – e
explicaria em parte a incerteza com que guardo minhas lembranças.
20.10.2015
Textos Não Tetos