terça-feira, 20 de outubro de 2015

O espaço e o eu - J. M. Coetzee



No Coração do País (1977). Romance do escritor sul-africano John Maxwell Coetzee. Breve transcrição para falhar (sem ludibriar) o esquecimento:

237.
Verões e invernos vão e retornam. Como passam tão velozes ou quantos passaram não sei dizer, posto que não me ocorreu, há muito tempo, começar a fazer marcas numa vara nem rabiscos na parede nem a escrever um diário de boa renegada. Mas o tempo fluiu incessantemente, e eu sou de fato uma velha malvada e louca, com o dorso arqueado e o nariz adunco e os dedos nodosos. Talvez me engane ao descrever o tempo como um rio a correr de infinito a infinito, levando-me consigo como uma rolha ou um graveto; ou talvez, tendo corrido na superfície, o tempo seguiu subterraneamente por certo período e depois tornou a emergir por motivos para sempre secretos para mim, e agora corre outra vez à luz, e eu sigo com ele e posso ser ouvida novamente, após tantos verões e invernos nas entranhas da terra, durante as quais as palavras devem ter prosseguido (pois onde eu estaria se se houvessem detido?), mas prosseguido sem deixar vestígio, sem memória. Ou talvez não exista tempo, talvez me equivoque ao conceber meu meio como temporal, talvez só haja espaço, e eu, uma mancha de luz a movimentar-se errante de um ponto a outro do espaço, a saltar anos num instante, ora assustada criança num canto da sala de aula, ora velha decrépita de dedos nodosos, o que não deixa de ser possível – minha mente é receptiva – e explicaria em parte a incerteza com que guardo minhas lembranças.


20.10.2015
Textos Não Tetos




Nenhum comentário:

Postar um comentário

Featured Post

Refri de laranja para quem tem sede de sonhos e outras epifanias que cabem numa fritadeira

“Algumas pessoas só conseguem dormir com algum peso sobre o corpo, eu era assim”. Foi o que eu escutei enquanto adormecia na rodoviá...