domingo, 26 de janeiro de 2014

Ventila dor diz que sim



Marisa empunhava violão, dedos oleaginosos de verão, ativista em mister do ressequido imo. Sem amor é mais fácil compor, supôs, impôs, um dedilhado correu pelo vazio da sala enquanto girava sua face, esperançosa que a música pudesse trazer algo, canto de sereia em cordas de aço, ventilador ligado como a base de um new age insueto.
Sua voz aguda. Um livro do Abreu destacado, grifo amarelo sobre astrologia e sexo despudorado nas luzes que cortam a noite em fatias. Marisa queria compor uma música sobre o mar. Sem amar é fácil falar do mar. Nos dias de menor sentir maior filigranar.
Sentiu-se gárrula.
Diapasão no gritar mar. Súplica equórea. Estende-se vogais. Entende-se em linhas gerais do não pensar.
Do compor um torpor dos dedos calor, Marisa era a nuca que se despedia do silêncio. Jogava pelas paredes claras os sons como se fossem cartas, aleatória em leve crescer de angústia e sonoridade, prelúdio da dor mais intensa antes do cessar.
Saiu da sala.
Foi estender roupas.
Por fim nada perpetuou: nenhuma letra rabiscada, nenhuma música memorada. O que não pode ser lembrado, alguma vez existiu?
O ventilador por ela enamorou cantando única nota sabida. Reverdeceu-a por alguns instantes, depois se manteve sozinho na sala negando com a cabeça, incrédulo por estar só.
Máquina alguma podia ventilar aquela dor.
Voar para compor Marisa era coisa de tempestade abraçada em calmaria, sem tomada, tombada nos braços de um amor que nada cria.
Vida estendida no sol do fim do dia. Fugaz compor a dor.
Ventilador diz que não.
Ventila dor diz que sim.

Tiago André Vargas
26.01.2014

Imagem de Guillermo.

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