sexta-feira, 29 de março de 2013

Tigres, Eufrates, a mesma pia cheia de louça




Esponja de aço.
Mesopotâmia significa terra entre os rios.
Tigres e Eufrates.
Tigres e Eufrates.
Algo autômato dentro das mais profundas redes cognitivas. Oculto, rançoso, como uma túbera. Mas Daniela não tem nariz de porco.
Itália.
Daniela não tem nariz de porco.
Tigres e Eufrates.
Mas Daniela está com a sua cabeça de tamanho usual repleta de redes cognitivas apoiada sobre os dedos. Dedos tão incomuns, cheios de espuma.
O que acontece é que Daniela tece esta rede ansiando lembrar-se para sempre que Mesopotâmia significa terra entre os rios.
Tigres e Eufrates.
Não para sempre, só até o vestibular.

Duas crianças saem para a rua estrelada, ambas carregam pratos com pares de talheres levemente engordurados.
Uma se agacha à margem do rio Tigres.
Outra do Eufrates.
E ambas esfregam com seus dedos tão comuns a louça castigada. Elas não pensam o que significa Caxias do Sul. Mas gostariam de ter espuma para ajudar no simples trabalho.

Daniela terminou de estudar.
Lavou sua louça.
Não teve nenhuma pergunta no vestibular sobre a Mesopotâmia ou o rio Tigres e muito menos o Eufrates. Tampouco Caxias do Sul.
Ela passou mesmo assim.
Caxias do Sul.
Um dia, depois de tantas luas minguadas e de louça recém lavada, Daniela perceberia algo que jamais estaria escrito em um livro de geografia: Caxias do Sul sempre será a mesma. E mesmo que mude, não será para ela. Mesmo que ela se mude, esta cidade lhe acompanhará, sussurrando em seu ouvido esquerdo.

Não fujas, é tarde, tanto faz.

Quebrou um prato.
E depois colheu os vidros.

Tiago André Vargas

Imagem de Lazlo Hollyfeld

domingo, 17 de março de 2013

Todo lugar é um lugar temporário





São infindos dedos
Abraçando chaves gélidas
Guardando
Em gavetas
Promessas e gengivas
Remelas e sonhos
O que eu faria com o cabelo das mulheres que seguram estas chaves?
Elas me colocaram em seus quartos
Mas não me trancaram com seus olhos
Com suas coxas disformes
Com seus ventres mornos
Tampouco com as chaves frias
E agora eu estou muito longe
A milhas do desenho que fiz para mim
Continentes distante do meu sorriso displicente
Simplório
Um traço em arco
Pela arrogância de não saber como sorrir
Pela simplicidade de não saber como desenhar
E se por um momento eu pensar em todas as portas que eu atravessei sem olhar para trás
Para todos os rostos desfragmentados sem esperança
Para todas lágrimas sinceras derramadas
Lágrimas puras
Lágrimas de dono em velório de cão
Eu não queria nada
Por isso tudo ficou para trás
Nada
Talvez apenas uma chave mestra
Invadir teu sono profano
Olhar para as paredes mal pintadas do teu quarto triste
Fazer um pedido enrustido em desejo
Arrumar a coberta já arrumada no teu corpo
Passos leves
Vagaroso ao girar a chave
Preocupado com o som do trinco
Preocupado com o som do peito
Fora do teu quarto
Caminhando
Correndo
Milhas
Um continente
Dois continentes
Longe o suficiente para erguer a cabeça
Nem triste ou feliz
Eu sei
As chaves sempre ficaram nos meus bolsos
Apenas meus palácios de vinte metros quadrados me deixaram
Todo lugar
É um lugar temporário

Tiago André Vargas


Fotografia de Zeynep Ozdemir.

sábado, 9 de março de 2013

Prêmio Associação Nacional dos Escritores 50 Anos


Ontem. Ao chegar em casa cansado do trabalho em assegurado dia banal, um envelope me aguardava.
As pequenas deliciosas arrebatadoras surpresas.
Já fazia algum tempo que fui notificado, quase nem me recordava mais que viria, mas, chegou.
Deu um sentimento bom. Como se um dia as coisas, todas essas coisas que não sabemos como chamar e logo chamamos de coisas, bem, essas coisas, tudo, um dia, devagar, quase esquecido, quem sabe, dê certo.

Vamos escrever.




sábado, 2 de março de 2013

Ganhe uma estrela




E as oportunidades de maneira furtivamente oportuna acabam transmudando desejos, indivíduos, simbólicos coletivos e toda a história. Especialmente as diminutas.
As pequenas oportunidades formam sólidos matrimônios. As pequenas oportunidades forjam talentosos estelionatários. As pequenas oportunidades criam esportistas, políticos, biólogos e engenheiros.
É oportuno entregar-se aos braços da oportunidade. Gratificante. Regozijador. É como ser escolhido, amado. Acolhido. Dormir na manjedoura.
E a oportunidade, além de oportuno falso argumento democrático de uma sociedade em liquefação, também é propícia para agentes motivacionais que se debatem pelas veias do nosso corpo.
Pois, pois, pois, até mesmo quem nunca teve uma oportunidade teve a oportunidade de impor seu caminho. A oportunidade de ser inoportuno, tirano, bestial.
A oportunidade da ira.
A oportunidade dos crimes estatísticos e dos jornais.
A oportunidade de colher rosas vermelhas com luvas brancas.
A oportunidade de não seguir a oportunidade deixaria de ser uma oportunidade, salvo a oportunidade de escolha, logo, ainda oportunidade.
Tudo é oportuno.
Tudo é inoportuno.
Contextos e percepções largados com escárnio em um papel lhe trouxeram a oportunidade de.
Complete a frase e ganhe uma estrela.

De você.

Tiago André Vargas



Imagem de K.natsu

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