quinta-feira, 28 de junho de 2012

Belo som despedaçado


Eu tenho dedos
Nem sempre uma alma
Mas geralmente, dedos
E eu gosto de tocar você
Polegar e saboneteiras
As pontas em arrasto
Minha larga mão como arado a entrar pelas raízes do teu cabelo
Gerando lábios escuros
Olhos férteis
Levedando uma alma
Mas não a minha
Esta se pendurou em algum cabide enquanto trocava de roupa
Mas você tem uma alma
Eu sei disso através dos eternos mesmos pares
De lábios
De olhos
Tão diferentes dos meus
Abissais
Meus pares são outonais
Nosso assemelho limita-se aos dedos
Somente porque você os tem
Talvez também possas me apertar
Sou seco e caibo na tua mão
Sou folha seca que nunca foi ao chão
Apenas desejo te mostrar o único belo som que faço
Quando enfiado entre teus dedos me findo despedaçado

Quem nasceu?


Autoria de Tiago André Vargas
Fotografia de Ren Hui Yoong.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Os cães sempre rosnam para uma bela cega


Definitivamente
Ela não era bonita
Infinitamente
Jamais o seria

Eu sei disso pois em outra vida fui um cão. Um vira-lata de língua rosada e pelo amarelo.
Enquanto você cumpria sua metódica jornada de trabalho tão bem assegurada em leis trabalhistas, sindicatos, faculdades de recursos humanos com aulas teóricas de 12 horas sobre cálculo do décimo terceiro concomitante às milhares de árvores que caem mês a mês para que o mundo possa assinar sua folha de pagamento, bem, enquanto a estúpida roda girava eu apenas ficava no sol com a minha bela língua rosada para fora, mostrava-a para todos sempre sendo simpático. Diferente de hoje, naquele tempo eu tinha carisma.
E toda aquela observação me fez perceber uma coisa, mesmo as moscas querendo deturpar minha concentração, eu pude perceber uma única coisa durante minha largada existência canina: Toda mulher tida como um desvio-padrão da beleza, o que neste específico âmbito torna-se um insulto já que falamos de modais, modelos, manequins e flamingos; enfim, todas as mulheres que não atraem os olhos dos homens são as mulheres que tem os mais belos olhos.
Não me pergunte o por quê.
E não entenda belos olhos como aqueles desprovidos de cor, pois se você não vê beleza nos olhos castanhos não é digno de amar.
Me pergunte o por quê.
Talvez você só possa ser objeto ou observador. As belas se tornam a primeira opção, acostumadas aos galanteios dos olhos afoitos que quase escorrem lágrimas de egocêntrica ejaculação precoce. As segundas nem tanto, logo elas aprendem a observar, não são mais cegas.
E a partir do momento que ela vê poderá descrever uma árvore para você. Ou um hipopótamo. Isso tem o seu valor, ajuda o processo de enxergar de olhos fechados, logo, ela poderá até mesmo perceber o quanto aquele teu sorriso debochado é primordial para que ela tenha coragem de encarar a vida, assinar todo mês a folha de pagamento ou quem sabe adotar um belo cachorro vira-lata de língua rosada e pelo amarelo.
Mas tudo isso somente acontece se ela tiver olhos. Ou um coração.
Amantes precisam ter olhos, de preferência, castanhos. Coração, é para todos.

Definitivamente
Ela não era bonita
Infinitamente
Jamais o seria

Então ela me olhou de frente
Fugiram-me todos os conceitos
Amém

Autoria de Tiago André Vargas
20.06.2012
Fotografia de Nira Gonzáles Reyes.

sábado, 16 de junho de 2012

Pedido de casamento em rede nacional


Tragou com o mesmo anseio que um desafogado. Assoprou toda a fumaça em sua cara enquanto ele fechava os olhos repugnantes de criança que experimenta rúcula pela segunda vez. Abriu os olhos. Disse:
- Qual é o teu problema?
- Que problema?
- Isso... Tudo... Qual é afinal?
- Eu não tenho nenhum problema... Além de você ser patético com estas perguntas de supermercado.
- Perguntas de supermercado?
- Porra... “Deseja mais alguma coisa?”, “Qual é o teu problema”, repetir minha última frase com uma interrogação no final... Me diz uma coisa agora, você já pensou qual é o teu problema?
- Eu não tenho problemas, eu os resolvo.
- Isso pode ser um problema.
Tragou novamente. Fumaça na cara. Rosto engelhado.
- Eu tenho um problema: Eu não sei por que gosto de você.
- Tente resolvê-lo então, você não é o senhor solução?
- Eu gosto de ti por que você é linda, por dentro e por fora.
Teve um ataque de risos. Rolou na cama com a mão pressionando a minúscula barriga enquanto os cabelos compridos se emaranhavam como notas de uma sinfonia sem maestro.
- Por que você está rindo?
- Ah... Você me mata, só isso.
As cores de suas tatuagens abrangiam as 27 do arco-íris. E ele teria que fazer aquela verde pergunta.
- E você... Sabe por que me ama?
- Eu nem te amo ô porra! Cê tá maluco? Acho que todo esse Way que você anda tomando está te prejudicando, brother.
Teve outro ataque de risos.
Ele lacrimejou um pouco e delineou um sorriso dissimulado.

Lá estava um homem que jamais faria um pedido de casamento em rede nacional. O mundo agradece mulheres como esta. Sem ironia. Brother.

Autoria de Tiago André Vargas
Fotografia de Sami.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

O sol e os poros


Meia jarra de água vazia
Meia água morna
Meia mão delicada
Dedos finos e água morna
Blues
Epiderme
Sabão
Deslize

Prepare-os
Pelos ouriçados
Ouriços simpáticos
Calor e afago
Abra seus poros
Abra

Se os dedos teatrais não forem suficientes
Quem sabe as ligas metálicas
Pinças
Alicates
Unhas esmaltadas
Abra os poros
Abra

Resguardado em um quarto que não fora pintado
Ouvindo negros de vozes lindas chorarem angustiados
Com guitarras tristes
Com harmônicas sempre mais tristes
Declarando letras tristes
Que foram escritas em quartos desbotados
Onde jamais entra luz
Lá repercutiam alguns gritos mentais
Enlouquecedores
Filtrados pela música
Agora belos
Eles querem que você abra os poros
Abra os poros
Abra

O sol vai nascer amanhã
O sol vai morrer amanhã
Eu prometo

Autoria de Tiago André Vargas
Fotografia de Natália.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Estacionamento


Havia um gato sobre uma árvore cortada miando para as estrelas. Ele parecia querer miar, repercutia seu som pelas janelas dos prédios, entreabertas como olhos de crianças que não dormem por não saberem como se faz. Ninguém sabe como se faz.
Aquele felino comprimia todo ar que lhe cabia para explodir agudo, o ar gélido carregava as estuantes melodias até os insensíveis ouvidos humanos que não diferem regalo de dor.
Merda de gato, diziam as velhas senhoras de espírito.
Gato de merda, diziam os adolescentes sebosos de ímpeto.
E todo o prédio em frente à árvore cortada, em frente à límpida calçada, se agonizava pelo vívido som emanado por um animal capaz de ser o que naturalmente lhe compete, mas, como ninguém entre blocos de concreto possui instinto, apenas martirizavam-se pelo infortúnio som que lhes acompanhava enquanto queimavam suas pizzas congeladas.
Um carro solitário no estacionamento do outro lado da rua.
- Está vendo ele?
- Quem? – Ela pediu, com aquele olhar tão compenetrado por trás dos vidros que haveria de carregar sempre consigo para perceber o supérfluo.
- Nosso profeta.
- O gato? – Ela sorriu, com aquele sorriso que erguia um quarto de centímetro a sua maçã do rosto e consequentemente os vidros que haveria de carregar consigo para poder...
- É. Ele subiu até lá por um motivo.
Silêncio. Adorável silêncio, do tipo que só se escuta em um estacionamento vazio dentro de um carro mal estacionado.
- Qual motivo?
Beijou-a. Entre miados abafados, apertos de mãos com pouco sangue tão díspares dos intumescidos lábios, diante de uma rua sem platéia, de uma calçada límpida sem propósito, de uma árvore cortada por estética e de um gato de merda que miava nada sórdido.
Deu a partida.
O estacionamento ficou vazio.
Vendo o carro passar diante seu felpudo corpo o gato calou-se, bem como músico que termina o repertório diante uma platéia descasa. Desceu da árvore, com a elegância que lhe era esperada e depois correu através do breu perdendo-se nas sombras da viela.
As janelas do prédio foram se fechando, tais como olhos de bebês que desistem de sonhar em vida, uma a uma, por fim, restou a última, nela debruçava-se um garoto de 12 anos que fumava escondido no 12º andar olhando para o demarcado estacionamento tão retilíneo, tão distante.
Ele fumava por solidão.
Se tivesse um gato não fumaria, e, se este soubesse cantar, poderia ser até mesmo feliz.
Não fume.
Eu fumo.
Autoria de Tiago André Vargas
Fotografia de Dennis Baker.

sábado, 2 de junho de 2012

Crença convença


Os melhores caminhos
Sem a mão de fauno
Não existe destino
Tão pouco respaldo
Correr sem crer
Pois crença aleija ímpeto
Então mira no infinito filho
Ele tem e quem não tem, não tem quem tem. Têm?
Prestem atenção
Desprezem a atenção
Um propósito não nasce no depósito
Tem que querer até doer
E se não doer ta apósito
Força filho
Quando sangrar não para
As pedras estão aí
Fazendo castelos ou calçadas
Elevada ou plainada
Nas nuvens e amuradas
Se carregas flores ou enxadas
Pouco importa
Desentorta
O que vale é o que se espalha
As sementes que se larga
Se vai nascer?
Só crer

Autoria de Tiago André Vargas
Fotografia de Chelsea Kay.

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Refri de laranja para quem tem sede de sonhos e outras epifanias que cabem numa fritadeira

“Algumas pessoas só conseguem dormir com algum peso sobre o corpo, eu era assim”. Foi o que eu escutei enquanto adormecia na rodoviá...