segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Ártemis e Actéon aos meus olhos

Estava eu ontem lendo Thomas Bulfinch, O Livro de Ouro da Mitologia, quando me deparei com a bela lenda de Ártemis e Actéon. Sabe quando você lê algo e sente falta de uma conversa? De um evento a mais? Pois bem, eu desejei muito que eles tivessem uma conversa nesta bela fábula e como sou um pretensioso inconformado, resolvi escrever ela do meu jeito utilizando como base o texto original contido no livro supracitado:



Ártemis e Actéon aos meus olhos

Era meio-dia, e o sol encontrava-se a igual distância de ambas as metas, quando o moço Actéon, filho do Rei Cadmo, assim se dirigiu aos jovens que com ele caçavam o cervo nas montanhas:

— Amigos, nossas redes e nossas armas estão úmidas do sangue das vítimas. Já nos divertimos bastante por um dia, e amanhã poderemos recomeçar as nossas atividades, agora que Apolo cresta a Terra, deixemos de lado nossos instrumentos e entreguemo-nos ao repouso.

Havia um vale rodeado por densa vegetação de ciprestes e pinheiros, consagrado à rainha caçadora, Ártemis. Na extremidade do vale havia uma gruta, não adornada pela arte, mas a natureza imitara a arte em sua construção, pois cravejara a abóbada de seu teto com pedras, tão delicadamente como se estivessem dispostas pelas mãos do homem. De um lado, jorrava uma fonte, cujas águas se espalhavam numa bacia cristalina. Ali, a deusa dos bosques costumava ir, quando cansada de caçar, e lavava seu corpo virginal na água espumejante.
Certo dia, tendo entrado ali com suas ninfas, entregou a uma delas o dardo, a aljava e o arco, a túnica a uma segunda, enquanto uma terceira retirava-lhe as sandálias dos pés. Então, Crócale, a mais habilidosa de todas, penteou-lhe os cabelos e Néfele, Híale e as demais carregavam a água, em grandes urnas.
Enquanto a deusa entregava-se assim aos cuidados íntimos, Actéon, tendo-se separado dos companheiros e vagando sem qualquer objetivo definido, chegou ao local, levado pelo destino. Pairando com cuidado sobre a entrada da gruta se pós a observar o corpo virgem da Deusa Ártemis sendo cuidado com todo zelo imaginável pelas suas ninfas que percorriam musicalmente cada detalhe do seu corpo branco a ser limpo de forma impecável. Actéon não a olhava com olhos de pecado e sim, com olhos de absurdo, de fascínio sobre-humano.  Por um descuido levado a atração inevitável Actéon aproximou-se um pouco, o suficiente para que as ninfas o vissem, e sendo o mesmo um homem, gritaram e correram para junto da deusa, a fim de escondê-la com seus corpos.
Ártemis, porém, era mais alta que as outras e sobrepujava todas pela cabeça. Uma cor semelhante à que tinge as nuvens no crepúsculo e na aurora cobriu o seu rosto, assim apanhada de surpresa. Cercada, como estava, por suas ninfas, ainda fez menção de voltar-se e procurou, impulsiva, as setas. Como estas não estivessem ao seu alcance, atirou água ao rosto do intruso, exclamando:

- Agora, vai, e dize, se te atreves, que viste Ártemis sem suas vestes.

Com esforço incalculável as palavras começaram a brotar da garganta de Actéon:

- Ártemis, minha Deusa, sendo eu apenas um caçador a ti louvei tantas vezes em busca de nobre alimento provindo da caçada que alimentasse a boca de meus irmãos. Jamais eu faria algo que difamasse tua imagem!
- Humano insolente! Além de ver meu corpo virginal nu te atreves a dirigir a palavra em mim sobre tal estado! Fecha-te os olhos agora!
- Eu não consigo minha Deusa... Eu não consigo...
- Não te aproximas!
- Não irei me aproximar! Pronto, me viro de costas a ti. Podemos conversar?
- Diga o que tens para me dizer.
- Cada segundo que passei a te olhar na entrada desta gruta a mim foi como um sonho, somente este momento valeu-me a vida.
- Somente o momento que me viu valeu-te a vida caçador?
- Sim minha Deusa...
- Então te vira novamente e olha meu corpo.

Imediatamente um par de chifres galhados cresceu na cabeça de Actéon, seu pescoço encompridou-se, suas orelhas tornaram-se pontudas, suas mãos e braços transformaram-se em patas, seu corpo cobriu-se de um pêlo espesso. O medo substituiu a antiga ousadia, e o herói fugiu. Ele próprio admirava a velocidade com que corria, mas, quando viu os chifres refletidos na água, quis dizer "Desgraçado!", e a palavra não saiu. Gemeu, e lágrimas escorreram-lhe pela cara que tomara o lugar de sua própria. Sua consciência no entanto, permaneceu. Que fazer? Voltar para casa, procurar seu palácio, ou ficar escondido nos bosques? Tinha medo de uma coisa e vergonha de outra.
Enquanto hesitava, os cães o avistaram. Primeiro Melampus, um cão espartano, deu o sinal, com um latido, depois, Panfagu, Dorceu, Lelaps, Teron, Nape, Tigre e todo o resto correram-lhe no encalço, mais velozes que o vento. Por despenhadeiros e rochedos, através de gargantas que pareciam impraticáveis, Actéon fugiu e os cães o seguiram. Onde ele muitas vezes caçara o cervo e açulara a matilha, a matilha o caçava, açulada por seus caçadores! Queria gritar: "Sou Actéon! Reconhecei vosso dono!", mas as palavras não obedeciam à sua vontade. O ar ressoava com os latidos dos cães. De súbito, um agarrou-o pelas costas, outro, pelos ombros. Enquanto os dois imobilizavam seu dono, o resto da matilha aproximou-se e cravou os dentes em sua carne. Ele gemeu — um gemido que não era humano, mas que não era, também, o de um cervo — e, caindo de joelhos, ergueu os olhos e teria erguido os braços, numa súplica, se os tivesse.
Seus amigos e companheiros festejaram os cães e procuraram Actéon por toda a parte, chamando-o para juntar-se à comitiva. Escutando o seu nome, ele virou a cabeça e ouviu os outros lamentarem a sua ausência. Antes estivesse ausente! Teria se comprazido em ver as façanhas dos cães, mas senti-las era demais. Todos estavam em torno dele, mordendo e despedaçando; e somente quando Actéon exalou o último suspiro, a ira de Ártemis se satisfez.


Modificado da obra original de Thomas Bulfinch por Tiago A. V.



sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Neve azul




Corro incandescente por entre as árvores petrificadas
Eu não tenho rumo, o desespero é minha morada
Ergue-te! Fútil atroz que descansa sobre a gelada
Não percebe que o movimento é a causa da jornada?

Lanço-te as melhores lições, aquelas que não sigo
Te mato por ser fraco e depois me contradigo
Tua fraqueza reflete a minha e isso eu não admito
Alguma espécie de remorso carrego como castigo

Tudo é frio e azul durante a caminhada
Meus pés doem, apodrecem durante a escalada
Persigo fielmente o desconhecido neste tipo de caçada
Onde algo parecido com um homem, procura algo parecido com o nada

Chego no topo e não tenho surpresa
O que encontro é a tristeza de ter conquistado aquilo que se almeja
E por defesa, falsa justifica, presenteio-me com proeza
Sentado no topo como um rei morto a ver todos sem realeza 

Meus pés brincam sobre o precipício desbotado
Sentado na beira deste abismo, visão em loco dentro do vácuo
Desolado e amargo, como criança a brincar com os sapatos
Formando com os pés algum tipo de movimento inexato

Enquanto que minhas canelas giram nesta dança macabra
O vento frio, rígido e estupefato de dor se propaga
Um homem na rua suja divaga, outro no mar limpo naufraga
E o que sobra sou eu e a neve azul que me esmaga

Obrigado neve azul. Por nada.


Autoria de Tiago André Vargas



quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

A faculdade de ser mau




Eu assalto teus castelos, te sufoco com um travesseiro enquanto dormes e escrevo alguma mensagem profana na tua parede. Invasão. Contrário de autorização, contrário de permissão. Contrário da conjugação, quebra das regras e subversão. Mate a todos e crave uma bandeira nessa terra. Quem gosta da luta? Aquele que pode lutar. Quem pode lutar? Aquele que espera vencer. Quem espera vencer? Aquele que possui um motivo? O motivo! Qual é o motivo? Não importa o motivo. O motivo é o próprio motivo e a vitória justifica a intenção, ganhe-se e é isso, sem variável. Vitória ou derrota, viver ou morrer.

No jogo da conquista sufoca-se a filosofia, pois refletir é abrir espaço para a dúvida e a dúvida demonstra fraqueza.

Se pensarmos essencialmente em qualquer questão a respeito da competitividade, na sua origem mais primordial, é quase inevitável não perguntarmos depois “por que?”. O ser humano... Que mundo mais enfadonho teríamos se não fosse pelo ser humano e sua indiferença! Se fossemos providos de uma verdadeira empatia, agiríamos tão instintivamente quanto animais e isso faria o mundo ser algo próximo de um paraíso. Não parece péssimo? Mate a todos e cravem suas bandeiras, pois ser racional é a faculdade de ser mau.



Autoria de Tiago André Vargas.




Featured Post

Refri de laranja para quem tem sede de sonhos e outras epifanias que cabem numa fritadeira

“Algumas pessoas só conseguem dormir com algum peso sobre o corpo, eu era assim”. Foi o que eu escutei enquanto adormecia na rodoviá...