sábado, 28 de maio de 2011

Chuva


Pescoço quebrado e os olhos para o céu
O cinza cobre o azul envolto como um véu
Os passos ficam rápidos de todo povaréu
E uma solitária gota de chuva molha meu chapéu

Corra! Se esconda! Ela pode te molhar!
Sim ela chegou e nem adianta esbravejar
O precavido um sorriso no rosto vai estampar
Depois de um mês, fez sentido o guarda-chuva carregar

Oh! que grande espetáculo é ver a humanidade
Diante de toda sua sabedoria e superioridade
Ver-se com um bando de animais a afugentar-se
Da simples água que cai com naturalidade

Queria eu ser um pingo de chuva a voar
E na nuvem gorda um cantinho espreitar
Olharia para baixo paciente a esperar
O melhor momento para do céu me jogar

Sendo gota, muitos lugares interessantes gostaria de visitar
Quem sabe escorregaria por um belo cacho de cabelo a balançar
Ou cairia no vidro por onde alguém solitário me olharia deslizar
Ou ainda na terra fértil, para dentro de uma flor eu me alojar

Inúmeras possibilidades de fato me vêm à mente
Mas nada faria esta poesia ser mais eloquente
Que me dispersar no lábio durante o beijo ardente
De dois apaixonados que se amam sob a chuva de presente





Autoria de Tiago André Vargas

Foto encontrada aqui

sábado, 21 de maio de 2011

Sem cordão




Hoje é o último dia. Hoje é a despedida, mas ninguém está com suas roupas preferidas. Hoje voltaremos a sermos aquilo que sempre fomos, seres prontos. Acabou a formação. Acabaram as desculpas de deformação. Eu sei que dói.
Por que ninguém abraça aquela mulher enquanto ela chora?
E porque ninguém chora enquanto eu tenho braços para consolar?
Casa. Solitário de volta para casa. De volta para o útero financiado. Ainda assim estamos em casa, ainda assim temos um conforto... Ainda assim esperamos uma nova vida. Trocamos de barriga, trocamos de mãe, mas ainda esperamos da mesma forma pela vida.
Saímos para fazer algo, aliviamos alguma tensão, compramos alguma esperança mas no fim do dia, quando a noite cai e o mundo aflora, para o útero voltamos.
Mas hoje é o dia da despedida. Uma tesoura com ponta velha um dia há de cortar este cordão que nossa mente insiste em dizer que há e nos perdermos a fora através do dia, através da noite. Caminharemos com as próprias pernas fodendo o julgamento dos outros com força e sem compaixão. Sem cordão. Sem limite. Até doer nossas pernas e nos obrigarmos a ficar por ali. Por ali, não aqui.



Autoria de Tiago André Vargas
Foto encontrada aqui.

domingo, 1 de maio de 2011

Admiração incompreensível



O casal de meia idade resolve polir algo que simploriamente o marido chama de “lado cultural” visitando uma exposição de artes quando ambos param diante de um quadro negro com um círculo branco pintado em seu centro. O marido diz:
- Eu não gostei.
- Eu gostei. – Revida a mulher.
O marido pensa que ela poderia estar revidando pelo simples prazer de contrariá-lo, mas como eles tinham feito sexo na noite passada e ela estava simplesmente um doce, descartou a ideia. Indagou:
- Por que você gostou?
- Ele é subjetivo.
- É um círculo.
- Você não entende nada de arte.
- Não e mesmo assim, esse quadro não tem nada de mais.
Um olhar pairou sobre o ar. Um pensamento ríspido invadiu a mente do marido. Ele não poderia controlá-lo, arranjaria problemas com ele... Mas tinha que colocá-lo para fora:
- Você gosta dele pelo simples fato de não compreendê-lo. E como não compreende, julga que ele está acima da tua capacidade intelectual. E para estar acima da tua capacidade intelectual deve ser uma obra prima, algo simplesmente genial. É o puro instinto de auto-preservação e auto-afirmação emergindo.
A mulher o olhou sem dizer uma palavra.
- Poesia, por exemplo. Se algo rimar e você compreender é simplório. Se você precisar recorrer a um dicionário a cada três palavras e nada fizer sentido, é magnífico. Vamos parar com esse modernismo decorrente de uma verdadeira doença intelectualóide onde precisamos fingir que algo é bom porque não compreendemos. Esta é uma merda de pintura. Parece a capa do filme O chamado, é ridículo!
A mulher continuava a lhe olhar sem dizer uma palavra.
- Ou então você conhece uma pessoa. E ela é neurocirurgiã. Pronto. Deve ser um gênio! Por quê? Pelo simples fato dela trabalhar com algo que você não conhece, não compreende. Novamente é uma afirmação para preservar a tua integridade intelectual. Mas ele apenas estudou outra coisa... Ele come batata frita entre os plantões e comenta sobre reality show com as enfermeiras... Ele não é o Messias!
O homem perdeu o fôlego e a mulher então disse:
- Você está certo. Agora vai fazer este teu discurso para a puta que te pariu.
- Por que falou assim comigo?
- Para preservar a minha integridade intelectual. Próximo quadro?

Autoria de Tiago André Vargas.
Postado em 01.05.2011
Escrito não se sabe quando, nem onde, tão pouco porquê.



Foto encontrada aqui.

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