domingo, 1 de maio de 2011

Admiração incompreensível



O casal de meia idade resolve polir algo que simploriamente o marido chama de “lado cultural” visitando uma exposição de artes quando ambos param diante de um quadro negro com um círculo branco pintado em seu centro. O marido diz:
- Eu não gostei.
- Eu gostei. – Revida a mulher.
O marido pensa que ela poderia estar revidando pelo simples prazer de contrariá-lo, mas como eles tinham feito sexo na noite passada e ela estava simplesmente um doce, descartou a ideia. Indagou:
- Por que você gostou?
- Ele é subjetivo.
- É um círculo.
- Você não entende nada de arte.
- Não e mesmo assim, esse quadro não tem nada de mais.
Um olhar pairou sobre o ar. Um pensamento ríspido invadiu a mente do marido. Ele não poderia controlá-lo, arranjaria problemas com ele... Mas tinha que colocá-lo para fora:
- Você gosta dele pelo simples fato de não compreendê-lo. E como não compreende, julga que ele está acima da tua capacidade intelectual. E para estar acima da tua capacidade intelectual deve ser uma obra prima, algo simplesmente genial. É o puro instinto de auto-preservação e auto-afirmação emergindo.
A mulher o olhou sem dizer uma palavra.
- Poesia, por exemplo. Se algo rimar e você compreender é simplório. Se você precisar recorrer a um dicionário a cada três palavras e nada fizer sentido, é magnífico. Vamos parar com esse modernismo decorrente de uma verdadeira doença intelectualóide onde precisamos fingir que algo é bom porque não compreendemos. Esta é uma merda de pintura. Parece a capa do filme O chamado, é ridículo!
A mulher continuava a lhe olhar sem dizer uma palavra.
- Ou então você conhece uma pessoa. E ela é neurocirurgiã. Pronto. Deve ser um gênio! Por quê? Pelo simples fato dela trabalhar com algo que você não conhece, não compreende. Novamente é uma afirmação para preservar a tua integridade intelectual. Mas ele apenas estudou outra coisa... Ele come batata frita entre os plantões e comenta sobre reality show com as enfermeiras... Ele não é o Messias!
O homem perdeu o fôlego e a mulher então disse:
- Você está certo. Agora vai fazer este teu discurso para a puta que te pariu.
- Por que falou assim comigo?
- Para preservar a minha integridade intelectual. Próximo quadro?

Autoria de Tiago André Vargas.
Postado em 01.05.2011
Escrito não se sabe quando, nem onde, tão pouco porquê.



Foto encontrada aqui.

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