domingo, 30 de agosto de 2015

A veleidade também se levanta



A história da humanidade é a história das guerras. A história de um homem é a história da humanidade. O mundo é bão, Sebastião; que agora o repudia: acha-o por demais Salgado. Tempero de lágrima é sal, nunca a gosto. Cães gostam de lágrimas, secar-lhe-ão, pelo sal, secar-lhe-cão, pela fidelidade. O que eu quero dizer é que você tem que fotografar o mundo e comover as pessoas, de preferência antes que elas peçam suas pizzas. A comoção é opcional, os farináceos inevitáveis. Está tudo bem assim; alguém se comoveu olhando um retrato e depois o esqueceu nas bordas da memória de catupiry, entenda, a arte nunca venceu e nem vencerá a fome, está tudo bem assim, a heurística só excita a alma quando não existe o corpo, e, para anular o corpo, só satisfazendo-o, embalar essa grande matéria que nunca deixará de ser um bebê; Byron vai dizer: O único jeito de findar um desejo é entregar-se a ele, que assim seja, de coração aos fisiológicos: Dormir, comer, defecar. Estes nunca fizeram mal a outrem, diferente do sexo; Cleópatra sabia muito mais de pirâmides do que Maslow. Sexo é necessidade do ego e do ovo, do ovário e do salto, da fuga e do asfalto, do espelho e da esfinge, do pau e do selfie. Freud toca nas trompas do trompete um jazz triste que incomoda uma legião de cães urbanos. Ou vai dizer que alguém tem filho preocupado em manter a espécie? Que raio de espécie? Se fosse assim tirano algum teria filho, de outra maneira, não poderia com ideologia matar o dos outros. Perpetuar a espécie? Se, mais que A espécie, eu sou O mundo! Como é que se dorme com um vizinho desses? Que o punhal de Macbeth nos proteja, pois é a entrega incomensurável dos desejos dessa minoritária e poderosa raça - os porcos dípodes de barriga dourada – que reflete a miséria premeditada, por eles tão bem escolhida, uma vez que, a tristeza cinza contrasta com maestria suas suntuosas barrigas. Eu vou dizer. Só voltando para Gênesis mesmo, começar pelo começo: acaba-se com a fome, faz-se um teto, transporta-se para longe as fezes (saneamento básico é uma expressão desaforada, jargão político social que não diz nada). O que realmente diz alguma coisa é febre tifóide, cólera, hepatite A, giardíase, leptospirose. Tem gente que não consegue comer se alguém contar uma historieta sobre fezes, só à alusão ao excremento já lhe causa repúdio, imagine se alimentar próximo não de uma, nem duas, mas das fezes de toda uma aldeia, acumulando-se dia após dia. Saneamento básico, não é básico, não é roupa preta, só se for de luto, pela indiferença desse grande velório festivo que é a nossa espécie. Primeiro comer, depois abrigar, por fim adormecer. Só depois desse estágio o sonho é permitido. Então lemos Hemingway e queremos viajar. Espanha, África. Escutaremos músicas. Olharemos fotos, de preferência, as que nelas não estejamos. Está tudo bem assim. Então nos deparamos com a fotografia de alguém privado de tudo que nos falaram que é básico, essencial, fisiológico, milhas e milhas deste maltratado corpo poder adormecer e depois sonhar. Inadmissível! Um ficou para trás! Você disse que já são mil? Como assim milhões?! Na quantidade, seremos tocados? Nessa foto, única, sim. Um nó nas tripas pela mão da angústia, mas que, inevitavelmente, será desfeito pela fome imperiosa que toca na porta do estômago dos mais e dos menos afortunados. Pediremos uma pizza. É assim que tudo termina?
A história da humanidade é a história das guerras. A história de um homem é a história da humanidade. Se tiver uma orquídea peristeria na sua casa e você não deixá-la morrer de fome, é pouco. Ainda assim, é algum tanto. A história da desumanidade, é a esperança. Talvez não esteja tudo bem.
Assim.

30.08.2015

Tiago André Vargas

Fotografia de Sebastião Salgado.

Obs: Esse conto só nasceu pela influência do documentário O sal da Terra, vida e a obra do fotógrafo Sebastião Salgado. O título é emprestado do livro O sol também se levanta, de Hemingway. Ainda, o cão a lamber lágrimas é referência ao cão da fotografia, mas, também, ao cão Achado: personagem da bela história de Saramago no livro A caverna, cão este que em uma linda passagem se põem a lamber as lágrimas do dono.




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quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Os cantos de Maldoror - Lautréamont



Lautréamont é pseudônimo de Isidore Ducasse, uruguaio nascido em 1846 que ainda na infância mudou-se para a França. Morreu aos 24 anos, de causas desconhecidas. Escreveu dois livros. O primeiro: Os Cantos de Maldoror, assinando-o com o heterônimo de Lautréamont, obra que tem como objetivo (explícito pelo personagem) elevá-lo a condição de maior, e inclusive pior, algoz da humanidade. Para tanto conta de maneira soberba crimes e barbáries que praticou, sonhou, desejou, inventou, nos envolvendo na sua maldade até confessarmos em silêncio a nossa, como uma grande aranha lírica surrealista tecendo com evasão um pesadelo agridoce.


O segundo e último livro, assinado por Isidore (seu verdadeiro nome) é antagônico à obra antecessora, pois neste, enaltece a grandeza e honradez do homem, defendendo com fanatismo que o papel da literatura é engrandecer e forjar a moral pura, bondosa, até mesmo religiosa, na humanidade. O transgressor se transforma em reacionário, fato curioso, que algumas suposições tentam explicar: O autor faz um jogo proposital de escárnio sobre a literatura; o autor enaltece os pontos do seu primeiro livro através de um processo de contradição: como se a escuridão inicial ficasse mais aguçada depois da ineficiente tentativa de jogar uma luz ingênua sobre ela, teoria interessante essa, já que no primeiro livro Lautréamont faz apologia a contradição do espírito; uma verdadeira mudança de credo, e assim, a necessidade de desvincular a maldade da sua persona artística de si mesmo; a suposta loucura que o autor se encontrava, que poderia inclusive ter lhe levado a morte precoce. OBS: Neste pequeno segundo livro Isidore critica de maneira veemente os autores que Lautréamont cortejou, dentre eles, Byron e Baudelaire.


Abaixo a transcrição de um trecho do livro Os cantos de Maldoror, de Lautréamont (tradução de Claudio Willer, Editora Iluminuras). Especificamente: Primeiros Cantos, canto número 5.

Eu vi, durante toda a minha vida, sem excetuar um só, os homens de ombros estreitos praticarem atos estúpidos e numerosos, embrutecerem seus semelhantes, enfiarem o dinheiro dos outros no bolso, e perverterem as almas por todos os meios. Assim chamam eles o motivo de suas ações: glória. Vendo esses espetáculos, eu quis rir como os outros; mas isso, estranha imitação, era impossível. Peguei um canivete cuja lâmina tinha um gume afiado, e rasguei minhas carnes nos lugares onde se reúnem os lábios. Por um instante, acreditei haver alcançado meu objetivo. Examinei em um espelho essa boca ferida por minha própria vontade! Havia sido um erro! O sangue, que corria em abundância dos dois ferimentos, não permitia distinguir, aliás, se esse era verdadeiramente o riso dos outros. Mas, após alguns instantes de comparação, vi muito bem que meu riso não se assemelhava ao dos humanos, ou seja, eu não ria. Eu vi os homens, de cabeça feia e olhos terríveis enfiados na órbita obscura, ultrapassarem a dureza da rocha, a rigidez do aço fundido, a crueldade do tubarão, a insolência da juventude, o furor insensato dos criminosos, as traições do hipócrita, os mais extraordinários atores, a força de caráter dos padres, e os seres os mais fechados por fora, os mais frios dos mundos e do céu; cansarem os moralistas na tentativa de descobrir o seu coração, e fazerem recair sobre si a cólera implacável do alto. Eu os vi a todos, ora o punho o mais robusto dirigido na direção do céu, como aquele de uma criança já pervertida contra a sua mãe, provavelmente excitados por algum espírito do inferno, os olhos possuídos por um remorso ardente e ao mesmo tempo enfurecido, em um silêncio glacial, não ousarem emitir as meditações vastas e ingratas encerradas em seus corações, a tal ponto estavam cheias de injustiças e de horror, e entristecerem de compaixão o Deus da misericórdia; ora, a cada momento do dia, desde o início da infância até o fim da velhice, distribuírem anátemas incríveis, que não tinham o sentido comum, contra tudo o que respira, contra eles mesmos e contra a Providência, a prostituírem as mulheres e as crianças, e assim desonrarem as partes do corpo consagradas ao pudor. Então, os mares sublevam as suas águas, engolem as tábuas em seus abismos; os furacões, os terremotos viram as casas pelo avesso; as pestes, as doenças diversas dizimam as famílias suplicantes. Mas os homens não prestam atenção. Eu os vi também enrubescerem, empalidecerem de vergonha por seu comportamento sobre esta terra; raramente. Tempestades, irmãs dos furacões; firmamento azulado, cuja beleza não admito; mar hipócrita, imagem do meu coração; terra, com o seio misterioso; habitantes das esferas; universo inteiro; Deus, que o criasse com magnificência, é a ti que invoco: mostra-me um homem que seja bom!… Mas que tua graça decuplique minhas forças naturais; pois, diante do espetáculo desse monstro, posso morrer de espanto: morre-se por menos. O que foi que eu disse contra os homens? Quem sou eu para recriminá-los por alguma coisa? Sou mais cruel que eles.

27.08.2015

Os cantos de Maldoror - Jacques Houplain (1947)


domingo, 23 de agosto de 2015

Crianças no Itauba



E o tempo que
Éramos
Crianças no Itauba
Distancia-se
Na velocidade das rodas
Tortas bodas as podas coevas
Elas
Só se movem
Porque
Os corais mudam
As cores com a beleza
Dos neurônios que se apagam
Estrelas pequenas
Na constelação de Alzheimer
Ou singelos astros
Que carregam no colo
A coragem
De um grande sentimento
Sem a coragem
De lhe dar um nome
A gota de sangue
Perguntará
Para outra
Gota de sangue
Nós de fato existimos?
O silêncio de um céu negro
Pesará
Mais que todas as plumas
De todas as rapinas
Que já não podem voar
Pois assim
Pensam
E
Se lembram
Se lembram
Se lembram


Tiago André Vargas

23.08.2015


Fotografia de Jovani Cecchin

Ônibus que me levou para a escola, de 96 - 02.

domingo, 16 de agosto de 2015

La bailarina



Este soneto é uma tentativa de escrever algo em espanhol, ou ainda, uma necessidade de escrever um coerente sentimento de momento indecifrável, cuja o caminho, somente a beleza de uma língua que eu desconheço me permitiu trilhar. Caso algo esteja errado, agradeço a correção de vocês.



La bailarina


Es verdad
Su madre te dio un vestido
Pero no fue una afección arterial
Lo que te permitiste soñar
Fuera de su cuerpo físico uña taza de cristal quiere hablar

Te convertiste en una activista
De la vida
En el peor callo de su mejor pie
Yo quiero besar

Cada día
En tu mundo
Una vuelta
Que no se inicia
Tampoco termina

Tiago André Vargas

16.08.2015

Pintura de Edgar Degas.

domingo, 9 de agosto de 2015

O fator Deus - José Saramago



Em um mundo onde é mais fácil obter a notícia de uma nova tragédia do que um novo pedaço de pão parece incoerente relembrar uma barbárie, seja qual for, até as mais terríveis são apenas um ponto que resplandece um pouco mais forte dentro da constelação das desgraças humanas, que só são desgraças por justamente serem infligidas pelo próprio homem. Dizer que o homem é o lobo do homem é injusto, com o lobo, animal que só mata para alimentar a si ou aos seus.


Já tinha lido As intermitências da Morte, de Saramago. Agora iniciei A caverna. Andei a pesquisar algumas coisas do português, descobri empatia para com ele, por motivos que se fossem evidenciados pareceriam oportunos da minha parte para igualar-me ao escritor, logo, não os cito. Numa dessas pesquisas me deparei com um texto que ele escreveu sobre o onze de setembro, lido no site da Folha de São Paulo. Abaixo o transcrevo:



José Saramago: O fator Deus


Algures na Índia. Uma fila de peças de artilharia em posição. Atado à boca de cada uma delas há um homem. No primeiro plano da fotografia um oficial britânico ergue a espada e vai dar ordem de fogo. Não dispomos de imagens do efeito dos disparos, mas até a mais obtusa das imaginações poderá "ver" cabeças e troncos dispersos pelo campo de tiro, restos sanguinolentos, vísceras, membros amputados. Os homens eram rebeldes.

Algures em Angola. Dois soldados portugueses levantam pelos braços um negro que talvez não esteja morto, outro soldado empunha um machete e prepara-se para lhe separar a cabeça do corpo. Esta é a primeira fotografia. Na segunda, desta vez há uma segunda fotografia, a cabeça já foi cortada, está espetada num pau, e os soldados riem. O negro era um guerrilheiro. Algures em Israel. Enquanto alguns soldados israelitas imobilizam um palestino, outro militar parte-lhe à martelada os ossos da mão direita. O palestino tinha atirado pedras. Estados Unidos da América do Norte, cidade de Nova York. Dois aviões comerciais norte-americanos, sequestrados por terroristas relacionados com o integrismo islâmico, lançam-se contra as torres do World Trade Center e deitam-nas abaixo.

Pelo mesmo processo um terceiro avião causa danos enormes no edifício do Pentágono, sede do poder bélico dos States. Os mortos, soterrados nos escombros, reduzidos a migalhas, volatilizados, contam-se por milhares.

As fotografias da Índia, de Angola e de Israel atiram-nos com o horror à cara, as vítimas são-nos mostradas no próprio instante da tortura, da agônica expectativa, da morte ignóbil. Em Nova York tudo pareceu irreal ao princípio, episódio repetido e sem novidade de mais uma catástrofe cinematográfica, realmente empolgante pelo grau de ilusão conseguido pelo engenheiro de efeitos especiais, mas limpo de estertores, de jorros de sangue, de carnes esmagadas, de ossos triturados, de merda. O horror, agachado como um animal imundo, esperou que saíssemos da estupefação para nos saltar à garganta. O horror disse pela primeira vez "aqui estou" quando aquelas pessoas saltaram para o vazio como se tivessem acabado de escolher uma morte que fosse sua. Agora o horror aparecerá a cada instante ao remover-se uma pedra, um pedaço de parede, uma chapa de alumínio retorcida, e será uma cabeça irreconhecível, um braço, uma perna, um abdômen desfeito, um tórax espalmado. Mas até mesmo isto é repetitivo e monótono, de certo modo já conhecido pelas imagens que nos chegaram daquele Ruanda-de-um-milhão-de-mortos, daquele Vietnã cozido a napalme, daquelas execuções em estádios cheios de gente, daqueles linchamentos e espancamentos daqueles soldados iraquianos sepultados vivos debaixo de toneladas de areia, daquelas bombas atômicas que arrasaram e calcinaram Hiroshima e Nagasaki, daqueles crematórios nazistas a vomitar cinzas, daqueles caminhões a despejar cadáveres como se de lixo se tratasse. De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta aos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus. Já foi dito que as religiões, todas elas, sem exceção, nunca serviram para aproximar e congraçar os homens, que, pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da miserável história humana. Ao menos em sinal de respeito pela vida, deveríamos ter a coragem de proclamar em todas as circunstâncias esta verdade evidente e demonstrável, mas a maioria dos crentes de qualquer religião não só fingem ignorá-lo, como se levantam iracundos e intolerantes contra aqueles para quem Deus não é mais que um nome, nada mais que um nome, o nome que, por medo de morrer, lhe pusemos um dia e que viria a travar-nos o passo para uma humanização real. Em troca prometeram-nos paraísos e ameaçaram-nos com infernos, tão falsos uns como outros, insultos descarados a uma inteligência e a um sentido comum que tanto trabalho nos deram a criar. Disse Nietzsche que tudo seria permitido se Deus não existisse, e eu respondo que precisamente por causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o pior, principalmente o mais horrendo e cruel. Durante séculos a Inquisição foi, ela também, como hoje os talebanes, uma organização terrorista que se dedicou a interpretar perversamente textos sagrados que deveriam merecer o respeito de quem neles dizia crer, um monstruoso conúbio pactuado entre a religião e o Estado contra a liberdade de consciência e contra o mais humano dos direitos: o direito a dizer não, o direito à heresia, o direito a escolher outra coisa, que isso só a palavra heresia significa.

E, contudo, Deus está inocente. Inocente como algo que não existe, que não existiu nem existirá nunca, inocente de haver criado um universo inteiro para colocar nele seres capazes de cometer os maiores crimes para logo virem justificar-se dizendo que são celebrações do seu poder e da sua glória, enquanto os mortos se vão acumulando, estes das torres gêmeas de Nova York, e todos os outros que, em nome de um Deus tornado assassino pela vontade e pela ação dos homens, cobriram e teimam em cobrir de terror e sangue as páginas da história. Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou, mas o "fator Deus", esse, está presente na vida como se efetivamente fosse o dono e o senhor dela. Não é um deus, mas o "fator Deus" o que se exibe nas notas de dólar e se mostra nos cartazes que pedem para a América (a dos Estados Unidos, não a outra...) a bênção divina. E foi o "fator Deus" em que o deus islâmico se transformou, que atirou contra as torres do World Trade Center os aviões da revolta contra os desprezos e da vingança contra as humilhações. Dir-se-á que um deus andou a semear ventos e que outro deus responde agora com tempestades. É possível, é mesmo certo. Mas não foram eles, pobres deuses sem culpa, foi o "fator Deus", esse que é terrivelmente igual em todos os seres humanos onde quer que estejam e seja qual for a religião que professem, esse que tem intoxicado o pensamento e aberto as portas às intolerâncias mais sórdidas, esse que não respeita senão aquilo em que manda crer, esse que depois de presumir ter feito da besta um homem acabou por fazer do homem uma besta.

Ao leitor crente (de qualquer crença...) que tenha conseguido suportar a repugnância que estas palavras provavelmente lhe inspiraram, não peço que se passe ao ateísmo de quem as escreveu. Simplesmente lhe rogo que compreenda, pelo sentimento de não poder ser pela razão, que, se há Deus, há só um Deus, e que, na sua relação com ele, o que menos importa é o nome que lhe ensinaram a dar. E que desconfie do "fator Deus". Não faltam ao espírito humano inimigos, mas esse é um dos mais pertinazes e corrosivos. Como ficou demonstrado e desgraçadamente continuará a demonstrar-se.




domingo, 2 de agosto de 2015

Apostasia ou Os ingleses cantam ou Em nome da mãe



Minha mãe e Kierkegaard, aos seus modos, pensaram o que era ser um bom, ou apenas, um cristão. Ambos sentiram que algo estava errado: o rapaz, de nome difícil de escrever, com a dialética e minha mãe através dos joelhos. Minha mãe não tem bons joelhos. Minha mãe dizia que é preciso se ajoelhar, mas sentia que não o era, mas eu precisava me ajoelhar, pois preciso era. Eu ainda não li Kierkegaard. Eu ainda não li minha mãe, apenas a exegese, que é mãe. Minha mãe diz que é preciso se ajoelhar. Sua pessoa além mar-mãe questiona. O comum dessas personas é a dor no joelho.
Algum inglês irá cantar dentro do meu ouvido: você é o único deus que eu preciso.
Eu fiz a catequese e vi meu melhor amigo escutar, de cabeça baixa, outro menino blasfemar qualquer coisa sobre Jesus, pregos, homossexualismo, Madalena e putaria. Na volta eu pegava carona com meu melhor amigo em uma Kombi, ele tinha vários cães com pulgas, eu levava as pulgas comigo, eu sempre me coçava depois da catequese, minha mãe podia pensar que eu era um anátema, que eu tinha o capeta embaixo do couro, mas minha mãe não podia falar que pensava tal coisa, era como ficar de pé quando todos se ajoelham.
Se os ingleses não fossem cercados pelo mar, fariam menos músicas. Se o mar não transladasse da água até qualquer coisa que nos encerra não haveria música. Dentro da igreja qualquer som fica mais bonito.

Decorei várias orações, mas foram poucos os olhos que, mirando-os, enterrei minhas armas e confessei amor. Os ingleses não sabem amar, por isso cantam. Minha mãe nunca foi pontual. Eu menos. Haverá quanto tempo para dizer que te amo? Time is on my side. Oremos.

Tiago André Vargas

02.08.2015

Cape cod evening, 1939, Edward Hopper.

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Refri de laranja para quem tem sede de sonhos e outras epifanias que cabem numa fritadeira

“Algumas pessoas só conseguem dormir com algum peso sobre o corpo, eu era assim”. Foi o que eu escutei enquanto adormecia na rodoviá...