Em um
mundo onde é mais fácil obter a notícia de uma nova tragédia do que um novo
pedaço de pão parece incoerente relembrar uma barbárie, seja qual for, até as
mais terríveis são apenas um ponto que resplandece um pouco mais forte dentro
da constelação das desgraças humanas, que só são desgraças por justamente serem
infligidas pelo próprio homem. Dizer que o homem é o lobo do homem é injusto,
com o lobo, animal que só mata para alimentar a si ou aos seus.
Já
tinha lido As intermitências da Morte, de Saramago. Agora iniciei A caverna.
Andei a pesquisar algumas coisas do português, descobri empatia para com ele,
por motivos que se fossem evidenciados pareceriam oportunos da minha parte para
igualar-me ao escritor, logo, não os cito. Numa dessas pesquisas me deparei com
um texto que ele escreveu sobre o onze de setembro, lido no site da Folha de São Paulo. Abaixo o transcrevo:
José
Saramago: O fator Deus
Algures
na Índia. Uma fila de peças de artilharia em posição. Atado à boca de cada uma
delas há um homem. No primeiro plano da fotografia um oficial britânico ergue a
espada e vai dar ordem de fogo. Não dispomos de imagens do efeito dos disparos,
mas até a mais obtusa das imaginações poderá "ver" cabeças e troncos
dispersos pelo campo de tiro, restos sanguinolentos, vísceras, membros
amputados. Os homens eram rebeldes.
Algures
em Angola. Dois soldados portugueses levantam pelos braços um negro que talvez
não esteja morto, outro soldado empunha um machete e prepara-se para lhe
separar a cabeça do corpo. Esta é a primeira fotografia. Na segunda, desta vez
há uma segunda fotografia, a cabeça já foi cortada, está espetada num pau, e os
soldados riem. O negro era um guerrilheiro. Algures em Israel. Enquanto alguns
soldados israelitas imobilizam um palestino, outro militar parte-lhe à
martelada os ossos da mão direita. O palestino tinha atirado pedras. Estados
Unidos da América do Norte, cidade de Nova York. Dois aviões comerciais
norte-americanos, sequestrados por terroristas relacionados com o integrismo
islâmico, lançam-se contra as torres do World Trade Center e deitam-nas abaixo.
Pelo
mesmo processo um terceiro avião causa danos enormes no edifício do Pentágono,
sede do poder bélico dos States. Os mortos, soterrados nos escombros, reduzidos
a migalhas, volatilizados, contam-se por milhares.
As
fotografias da Índia, de Angola e de Israel atiram-nos com o horror à cara, as
vítimas são-nos mostradas no próprio instante da tortura, da agônica
expectativa, da morte ignóbil. Em Nova York tudo pareceu irreal ao princípio,
episódio repetido e sem novidade de mais uma catástrofe cinematográfica,
realmente empolgante pelo grau de ilusão conseguido pelo engenheiro de efeitos
especiais, mas limpo de estertores, de jorros de sangue, de carnes esmagadas,
de ossos triturados, de merda. O horror, agachado como um animal imundo,
esperou que saíssemos da estupefação para nos saltar à garganta. O horror disse
pela primeira vez "aqui estou" quando aquelas pessoas saltaram para o
vazio como se tivessem acabado de escolher uma morte que fosse sua. Agora o
horror aparecerá a cada instante ao remover-se uma pedra, um pedaço de parede,
uma chapa de alumínio retorcida, e será uma cabeça irreconhecível, um braço,
uma perna, um abdômen desfeito, um tórax espalmado. Mas até mesmo isto é
repetitivo e monótono, de certo modo já conhecido pelas imagens que nos
chegaram daquele Ruanda-de-um-milhão-de-mortos, daquele Vietnã cozido a
napalme, daquelas execuções em estádios cheios de gente, daqueles linchamentos
e espancamentos daqueles soldados iraquianos sepultados vivos debaixo de
toneladas de areia, daquelas bombas atômicas que arrasaram e calcinaram
Hiroshima e Nagasaki, daqueles crematórios nazistas a vomitar cinzas, daqueles
caminhões a despejar cadáveres como se de lixo se tratasse. De algo sempre
haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta aos seres humanos mortos das
piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais
criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que,
desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de
Deus. Já foi dito que as religiões, todas elas, sem exceção, nunca serviram
para aproximar e congraçar os homens, que, pelo contrário, foram e continuam a
ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas
violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos
capítulos da miserável história humana. Ao menos em sinal de respeito pela
vida, deveríamos ter a coragem de proclamar em todas as circunstâncias esta
verdade evidente e demonstrável, mas a maioria dos crentes de qualquer religião
não só fingem ignorá-lo, como se levantam iracundos e intolerantes contra
aqueles para quem Deus não é mais que um nome, nada mais que um nome, o nome
que, por medo de morrer, lhe pusemos um dia e que viria a travar-nos o passo
para uma humanização real. Em troca prometeram-nos paraísos e ameaçaram-nos com
infernos, tão falsos uns como outros, insultos descarados a uma inteligência e
a um sentido comum que tanto trabalho nos deram a criar. Disse Nietzsche que
tudo seria permitido se Deus não existisse, e eu respondo que precisamente por
causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo,
principalmente o pior, principalmente o mais horrendo e cruel. Durante séculos
a Inquisição foi, ela também, como hoje os talebanes, uma organização
terrorista que se dedicou a interpretar perversamente textos sagrados que
deveriam merecer o respeito de quem neles dizia crer, um monstruoso conúbio
pactuado entre a religião e o Estado contra a liberdade de consciência e contra
o mais humano dos direitos: o direito a dizer não, o direito à heresia, o
direito a escolher outra coisa, que isso só a palavra heresia significa.
E,
contudo, Deus está inocente. Inocente como algo que não existe, que não existiu
nem existirá nunca, inocente de haver criado um universo inteiro para colocar
nele seres capazes de cometer os maiores crimes para logo virem justificar-se
dizendo que são celebrações do seu poder e da sua glória, enquanto os mortos se
vão acumulando, estes das torres gêmeas de Nova York, e todos os outros que, em
nome de um Deus tornado assassino pela vontade e pela ação dos homens, cobriram
e teimam em cobrir de terror e sangue as páginas da história. Os deuses, acho
eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo
universo que os inventou, mas o "fator Deus", esse, está presente na
vida como se efetivamente fosse o dono e o senhor dela. Não é um deus, mas o
"fator Deus" o que se exibe nas notas de dólar e se mostra nos
cartazes que pedem para a América (a dos Estados Unidos, não a outra...) a
bênção divina. E foi o "fator Deus" em que o deus islâmico se
transformou, que atirou contra as torres do World Trade Center os aviões da
revolta contra os desprezos e da vingança contra as humilhações. Dir-se-á que
um deus andou a semear ventos e que outro deus responde agora com tempestades.
É possível, é mesmo certo. Mas não foram eles, pobres deuses sem culpa, foi o
"fator Deus", esse que é terrivelmente igual em todos os seres
humanos onde quer que estejam e seja qual for a religião que professem, esse
que tem intoxicado o pensamento e aberto as portas às intolerâncias mais
sórdidas, esse que não respeita senão aquilo em que manda crer, esse que depois
de presumir ter feito da besta um homem acabou por fazer do homem uma besta.
Ao
leitor crente (de qualquer crença...) que tenha conseguido suportar a repugnância
que estas palavras provavelmente lhe inspiraram, não peço que se passe ao
ateísmo de quem as escreveu. Simplesmente lhe rogo que compreenda, pelo
sentimento de não poder ser pela razão, que, se há Deus, há só um Deus, e que,
na sua relação com ele, o que menos importa é o nome que lhe ensinaram a dar. E
que desconfie do "fator Deus". Não faltam ao espírito humano
inimigos, mas esse é um dos mais pertinazes e corrosivos. Como ficou
demonstrado e desgraçadamente continuará a demonstrar-se.
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