Lautréamont
é pseudônimo de Isidore Ducasse, uruguaio nascido em 1846 que ainda na infância
mudou-se para a França. Morreu aos 24 anos, de causas desconhecidas. Escreveu dois
livros. O primeiro: Os Cantos de Maldoror, assinando-o com o heterônimo de Lautréamont,
obra que tem como objetivo (explícito pelo personagem) elevá-lo a condição de
maior, e inclusive pior, algoz da humanidade. Para tanto conta de maneira
soberba crimes e barbáries que praticou, sonhou, desejou, inventou, nos envolvendo
na sua maldade até confessarmos em silêncio a nossa, como uma grande aranha lírica
surrealista tecendo com evasão um pesadelo agridoce.
O
segundo e último livro, assinado por Isidore (seu verdadeiro nome) é antagônico
à obra antecessora, pois neste, enaltece a grandeza e honradez do homem,
defendendo com fanatismo que o papel da literatura é engrandecer e forjar a moral pura, bondosa, até mesmo religiosa, na humanidade. O transgressor se transforma em reacionário, fato curioso,
que algumas suposições tentam explicar: O autor faz um jogo proposital de
escárnio sobre a literatura; o autor enaltece os pontos do seu primeiro livro
através de um processo de contradição: como se a escuridão inicial ficasse mais
aguçada depois da ineficiente tentativa de jogar uma luz ingênua sobre ela,
teoria interessante essa, já que no primeiro livro Lautréamont faz apologia a
contradição do espírito; uma verdadeira mudança de credo, e assim, a
necessidade de desvincular a maldade da sua persona artística de si mesmo; a suposta
loucura que o autor se encontrava, que poderia inclusive ter lhe levado a morte
precoce. OBS: Neste pequeno segundo livro Isidore critica de maneira veemente
os autores que Lautréamont cortejou, dentre eles, Byron e Baudelaire.
Abaixo
a transcrição de um trecho do livro Os cantos de Maldoror, de Lautréamont (tradução
de Claudio Willer, Editora Iluminuras). Especificamente: Primeiros Cantos, canto
número 5.
Eu
vi, durante toda a minha vida, sem excetuar um só, os homens de ombros
estreitos praticarem atos estúpidos e numerosos, embrutecerem seus semelhantes,
enfiarem o dinheiro dos outros no bolso, e perverterem as almas por todos os
meios. Assim chamam eles o motivo de suas ações: glória. Vendo esses
espetáculos, eu quis rir como os outros; mas isso, estranha imitação, era
impossível. Peguei um canivete cuja lâmina tinha um gume afiado, e rasguei
minhas carnes nos lugares onde se reúnem os lábios. Por um instante, acreditei
haver alcançado meu objetivo. Examinei em um espelho essa boca ferida por minha
própria vontade! Havia sido um erro! O sangue, que corria em abundância dos
dois ferimentos, não permitia distinguir, aliás, se esse era verdadeiramente o
riso dos outros. Mas, após alguns instantes de comparação, vi muito bem que meu
riso não se assemelhava ao dos humanos, ou seja, eu não ria. Eu vi os homens,
de cabeça feia e olhos terríveis enfiados na órbita obscura, ultrapassarem a
dureza da rocha, a rigidez do aço fundido, a crueldade do tubarão, a insolência
da juventude, o furor insensato dos criminosos, as traições do hipócrita, os
mais extraordinários atores, a força de caráter dos padres, e os seres os mais
fechados por fora, os mais frios dos mundos e do céu; cansarem os moralistas na
tentativa de descobrir o seu coração, e fazerem recair sobre si a cólera
implacável do alto. Eu os vi a todos, ora o punho o mais robusto dirigido na
direção do céu, como aquele de uma criança já pervertida contra a sua mãe,
provavelmente excitados por algum espírito do inferno, os olhos possuídos por
um remorso ardente e ao mesmo tempo enfurecido, em um silêncio glacial, não
ousarem emitir as meditações vastas e ingratas encerradas em seus corações, a
tal ponto estavam cheias de injustiças e de horror, e entristecerem de
compaixão o Deus da misericórdia; ora, a cada momento do dia, desde o início da
infância até o fim da velhice, distribuírem anátemas incríveis, que não tinham
o sentido comum, contra tudo o que respira, contra eles mesmos e contra a
Providência, a prostituírem as mulheres e as crianças, e assim desonrarem as
partes do corpo consagradas ao pudor. Então, os mares sublevam as suas águas,
engolem as tábuas em seus abismos; os furacões, os terremotos viram as casas
pelo avesso; as pestes, as doenças diversas dizimam as famílias suplicantes.
Mas os homens não prestam atenção. Eu os vi também enrubescerem, empalidecerem
de vergonha por seu comportamento sobre esta terra; raramente. Tempestades,
irmãs dos furacões; firmamento azulado, cuja beleza não admito; mar hipócrita,
imagem do meu coração; terra, com o seio misterioso; habitantes das esferas;
universo inteiro; Deus, que o criasse com magnificência, é a ti que invoco:
mostra-me um homem que seja bom!… Mas que tua graça decuplique minhas forças
naturais; pois, diante do espetáculo desse monstro, posso morrer de espanto:
morre-se por menos. O que foi que eu disse contra os homens? Quem sou eu para
recriminá-los por alguma coisa? Sou mais cruel que eles.
27.08.2015
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Os cantos de Maldoror - Jacques Houplain (1947) |
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