Displicentes
autofalantes cantam flume isolando-me
em um universo de lataria gradeado pelas percepções dos vidros de areia e
mentira, meu corpo trafega na mesma vastidão que galgam os pensamentos:
condicionado ao fluxo de terceiros. Referir-se à humanidade como terceiros é o
prenúncio da renúncia do amor. Dessemelhança. Quer escolher alguém? Só o amor é
todo cor de vinho e cá estou, rodando através da pneumática para um destino
indiferente.
Chove.
Pelo mesmo vidro
assisto as pessoas correrem. Elas colocam objetos sobre as cabeças, olham
obstinadas para um metro à frente dos pés. Pássaros ouvem um
disparo.
Em uma paisagem azáfama
algo estático salta-me aos olhos em completa homogeneidade, abrupto e feroz,
sinto o desejo de referir-me a ela como uma primeira, assemelha, estanco a compassada
locomoção em prol das minhas fagulhas que acreditam em algo todo cor de vinho.
Ela tinha o cabelo
desprovido de cor, olhava para o céu escuro com olhos claros, banhada pela água
e à margem das lágrimas, olhos luzentes suprimidos pela atmosfera soturna de um
céu impresso sem tinta. Segurava uma maleta em frente ao peito,
como se esta pudesse proteger seu coração de algo.
Ela olhou minha face
e começou a chorar. Sentia uma dor tão extensa que não poderia despejar aquelas
lágrimas sem plateia. Talvez necessitasse ser vista para compreender que
tamanha dor sentida era real. Eu via a
tez pálida como envoltório de sua consistência desesperançada e mortuária, seu
espírito afogado através da incredulidade das corridas de terceiros pelas
calçadas molhadas enquanto ela, erma e estatelada, buscava algum alento no céu e
a maleta obsoleta era segurada com os resquícios do sonho a lamber os dedos: um emalado paraíso de anemia.
Contive o impulso de
sair do universo de lataria, trocar uma palavra errática com aquela santa que
não mendigava fé, beijar-lhe os doentios lábios verde-mar e acariciar seu
cabelo enxugando chuva embalsamada que umedece todo bicho que sofre sozinho.
Os terceiros no
universo de lataria começaram a se movimentar, eu os acompanhei, não meus
pensamentos.
Torci o pescoço e avancei
até não mais poder vê-la.
Minha alma permanecia pousada sobre o nó anelar, algo courino tocando uma alfazema, em conjunto àquela mulher que sofria úmida e
de corpo abraçado à maleta. O que haveria dentro desta?
Um buzinaço.
Um pneu gemendo
estridente.
Um carro capota à
minha frente.
Vidros de mentira
foram estilhaçados, corpos foram desmembrados e gritos de histeria contaminavam
ainda mais a chuva chumbo que caía. Muitos saíram de suas latarias e correram
no encalço da tragédia concebida, figurantes do dia a dia esperançosos pelo
momento de usar suas fantasias.
Nada fiz.
As verdadeiras
tragédias nunca são contempladas, tampouco remediadas.
Segue meu fluxo de
pensamento.
Segue meu destino
indiferente.
Segue a dor de alguém
que alaga a calçada.
Ciente.
Eu estava dentro
daquela maleta; exausto em me segurar, semoto para me abrir, absorto na
incredulidade que algo há para salvar.
Como a chuva, só
podemos cair. Um arrepio na medula e a vida, irão passar.
Tiago André
Vargas
10.11.2013
Pintura de James Abbott Mcneill Whistler.
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