domingo, 10 de novembro de 2013

Emalado paraíso de anemia













Displicentes autofalantes cantam flume isolando-me em um universo de lataria gradeado pelas percepções dos vidros de areia e mentira, meu corpo trafega na mesma vastidão que galgam os pensamentos: condicionado ao fluxo de terceiros. Referir-se à humanidade como terceiros é o prenúncio da renúncia do amor. Dessemelhança. Quer escolher alguém? Só o amor é todo cor de vinho e cá estou, rodando através da pneumática para um destino indiferente.
Chove.
Pelo mesmo vidro assisto as pessoas correrem. Elas colocam objetos sobre as cabeças, olham obstinadas para um metro à frente dos pés. Pássaros ouvem um disparo.
Em uma paisagem azáfama algo estático salta-me aos olhos em completa homogeneidade, abrupto e feroz, sinto o desejo de referir-me a ela como uma primeira, assemelha, estanco a compassada locomoção em prol das minhas fagulhas que acreditam em algo todo cor de vinho.
Ela tinha o cabelo desprovido de cor, olhava para o céu escuro com olhos claros, banhada pela água e à margem das lágrimas, olhos luzentes suprimidos pela atmosfera soturna de um céu impresso sem tinta. Segurava uma maleta em frente ao peito, como se esta pudesse proteger seu coração de algo.
Ela olhou minha face e começou a chorar. Sentia uma dor tão extensa que não poderia despejar aquelas lágrimas sem plateia. Talvez necessitasse ser vista para compreender que tamanha dor sentida era real. Eu via a tez pálida como envoltório de sua consistência desesperançada e mortuária, seu espírito afogado através da incredulidade das corridas de terceiros pelas calçadas molhadas enquanto ela, erma e estatelada, buscava algum alento no céu e a maleta obsoleta era segurada com os resquícios do sonho a lamber os dedos: um emalado paraíso de anemia.
Contive o impulso de sair do universo de lataria, trocar uma palavra errática com aquela santa que não mendigava fé, beijar-lhe os doentios lábios verde-mar e acariciar seu cabelo enxugando chuva embalsamada que umedece todo bicho que sofre sozinho.
Os terceiros no universo de lataria começaram a se movimentar, eu os acompanhei, não meus pensamentos.
Torci o pescoço e avancei até não mais poder vê-la.
Minha alma permanecia pousada sobre o nó anelar, algo courino tocando uma alfazema, em conjunto àquela mulher que sofria úmida e de corpo abraçado à maleta. O que haveria dentro desta?

Um buzinaço.
Um pneu gemendo estridente.
Um carro capota à minha frente.
Vidros de mentira foram estilhaçados, corpos foram desmembrados e gritos de histeria contaminavam ainda mais a chuva chumbo que caía. Muitos saíram de suas latarias e correram no encalço da tragédia concebida, figurantes do dia a dia esperançosos pelo momento de usar suas fantasias.
Nada fiz.
As verdadeiras tragédias nunca são contempladas, tampouco remediadas.
Segue meu fluxo de pensamento.
Segue meu destino indiferente.
Segue a dor de alguém que alaga a calçada.
Ciente.
Eu estava dentro daquela maleta; exausto em me segurar, semoto para me abrir, absorto na incredulidade que algo há para salvar.
Como a chuva, só podemos cair. Um arrepio na medula e a vida, irão passar. 

Tiago André Vargas

10.11.2013





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