Não
existe bom fim. “Você deve colocar essa fita no pulso e fazer três desejos; até
o dia que a fita romper eles estarão realizados”. Nós velhos não sentimos
saudade da infância. Não há como saudar o esquecido. Ela era da Bahia, tínhamos
idade para fingir não sermos mais crianças. “Você sempre cheira a protetor
solar? Me dá vontade de ir à praia”. Ela era uma criatura com vontades, eu
pensava ser original, mas ainda era muito asséptico para saber qualquer coisa,
com as unhas curtas não era capaz de rasgar minha ventura. “Essa chuva que cai
no fim da tarde me dá vontade de tomar sorvete”. No início eu perguntava “por
quê?”. Mas ela sempre dava de ombros. Os dois ombros subiam, a cabeça deitava,
no esquerdo, e o pescoço se mostrava agradando os três orixás. Ela sabia das
suas vontades, não dos seus motivos. “Quando eu passo a mão no pelo das costas
de Catatau, no sentido contrário, dá uma agonia”. Escorrer os dedos pela
penugem sempre foi uma manifestação de desejo. Naquela época eu nada sabia,
mas, talvez, pressentisse pela maneira como sua respiração sibilava que ela
ansiava por contato. Que alguém puxasse suas orelhas, lambesse suas costas,
mordesse seu calcanhar. “Quando esse cachorro me olha assim, quieto, até me dá
vontade de achar que ele é gente”. Eu desejei por três vezes beijá-la e amarrei
com tanta vontade aquela fita que machuquei o meu pulso. “A sua fita, como
está?”. Infelizmente estava intacta. O amor não parecia ser algo afiado o
suficiente para romper. Perguntei como estava a dela. “Linda”. O que ela teria
desejado? Saúde para os seus pais. Vida longa a Catatau. Mas não com dois
desejos, utilizaria um único desejando saúde para toda família. O segundo
desejo seria idílico, aposto: como que o sol sempre brilhasse, que as ondas do
mar nunca se cansassem de cortejar a areia, que ela pudesse um dia viajar pelo
espaço. A lua de Salvador era esférica, uma moeda que brilhava muito e me fazia
pensar estar com sorte. “Um dos meus três desejos foi que desse tudo certo com
o seu avião quando você voltar para casa”. Algumas lembranças são de aço,
tantas esperanças delicadas e bem arquitetadas se perdem como teia em ventania,
triste linha, que toca com os três dedos a janela nos lembrando que tudo pode
se desfazer. Se você tentar trapacear as regras da crença precisa ser com o
peito aberto por Oxum, segurar os cabelos como se dependesse a vida e beijar
como se fosse engolir o mar. Era o meu primeiro amor e eu não sabia de nada
disso, era noite, sentia o cheiro de protetor solar. Toquei a sua mão. Morna.
Me inclinei, ela se afastou. A fita está dentro de uma caixa, mas a caixa está
esquecida. “O que é isso menino?”. Ela se desfez pela noite e ninguém poderia
salvar a minha dor. Nunca retornei para àquela cidade. “O que é isso menino?”. Isso
é uma memória se criando para um velho lembrar enquanto olha a lua turva de São
Paulo. No momento eu nada respondi, apenas tentei rasgar a fita.
Tiago André Vargas
31.05.2015
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Lagoa do Bonfim, longe da Bahia. Rio Grande do Norte. |