domingo, 6 de março de 2016

Papai via longe, muito longe – Louis Ferdinand Céline



Meu pai, com medo de que eu desse para ladrão, berrava como um trombone. Só porque, uma tarde, eu tinha comido todo o açúcar do açucareiro junto com Tom. Nunca se esqueceram daquilo. Ainda por cima, eu tinha outro defeito, andava sempre de bunda suja. Não me limpava direito, não tinha tempo. A minha desculpa é que a gente estava sempre com pressa… Também me lavava sempre mal, pois tinha medo dos tapas que me esperavam se eu me atrasasse e que eu queria evitar… Por isso corria… Deixava a porta do banheiro sempre aberta para perceber se havia alguém por perto… Fazia cocô como um passarinho, entre duas tempestades…
Subia aos pulos para o outro andar, não me achavam mais… Ficava com merda no cu durante semanas. Eu reparava no cheiro, não chegava muito perto das pessoas.
“É sujo como um porco no chiqueiro! Não tem respeito próprio! Nunca vai conseguir ganhar a vida! Todos os patrões que tiver vão despedi-lo logo”… Para ele, o meu futuro era uma bosta…
“Que fedor!… Não é que vamos acabar tendo que sustentá-lo!…”
Papai via longe, muito longe. Ainda repetia, insistindo em latim, “Sana… corpore sano”… Minha mãe não sabia o que responder.

Morte a Crédito, Louis Ferdinand Céline, 1951.

06.03.2016

Textos Não Tetos

Louis Ferdinand Céline

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