domingo, 31 de maio de 2015

Rebento



Não existe bom fim. “Você deve colocar essa fita no pulso e fazer três desejos; até o dia que a fita romper eles estarão realizados”. Nós velhos não sentimos saudade da infância. Não há como saudar o esquecido. Ela era da Bahia, tínhamos idade para fingir não sermos mais crianças. “Você sempre cheira a protetor solar? Me dá vontade de ir à praia”. Ela era uma criatura com vontades, eu pensava ser original, mas ainda era muito asséptico para saber qualquer coisa, com as unhas curtas não era capaz de rasgar minha ventura. “Essa chuva que cai no fim da tarde me dá vontade de tomar sorvete”. No início eu perguntava “por quê?”. Mas ela sempre dava de ombros. Os dois ombros subiam, a cabeça deitava, no esquerdo, e o pescoço se mostrava agradando os três orixás. Ela sabia das suas vontades, não dos seus motivos. “Quando eu passo a mão no pelo das costas de Catatau, no sentido contrário, dá uma agonia”. Escorrer os dedos pela penugem sempre foi uma manifestação de desejo. Naquela época eu nada sabia, mas, talvez, pressentisse pela maneira como sua respiração sibilava que ela ansiava por contato. Que alguém puxasse suas orelhas, lambesse suas costas, mordesse seu calcanhar. “Quando esse cachorro me olha assim, quieto, até me dá vontade de achar que ele é gente”. Eu desejei por três vezes beijá-la e amarrei com tanta vontade aquela fita que machuquei o meu pulso. “A sua fita, como está?”. Infelizmente estava intacta. O amor não parecia ser algo afiado o suficiente para romper. Perguntei como estava a dela. “Linda”. O que ela teria desejado? Saúde para os seus pais. Vida longa a Catatau. Mas não com dois desejos, utilizaria um único desejando saúde para toda família. O segundo desejo seria idílico, aposto: como que o sol sempre brilhasse, que as ondas do mar nunca se cansassem de cortejar a areia, que ela pudesse um dia viajar pelo espaço. A lua de Salvador era esférica, uma moeda que brilhava muito e me fazia pensar estar com sorte. “Um dos meus três desejos foi que desse tudo certo com o seu avião quando você voltar para casa”. Algumas lembranças são de aço, tantas esperanças delicadas e bem arquitetadas se perdem como teia em ventania, triste linha, que toca com os três dedos a janela nos lembrando que tudo pode se desfazer. Se você tentar trapacear as regras da crença precisa ser com o peito aberto por Oxum, segurar os cabelos como se dependesse a vida e beijar como se fosse engolir o mar. Era o meu primeiro amor e eu não sabia de nada disso, era noite, sentia o cheiro de protetor solar. Toquei a sua mão. Morna. Me inclinei, ela se afastou. A fita está dentro de uma caixa, mas a caixa está esquecida. “O que é isso menino?”. Ela se desfez pela noite e ninguém poderia salvar a minha dor. Nunca retornei para àquela cidade. “O que é isso menino?”. Isso é uma memória se criando para um velho lembrar enquanto olha a lua turva de São Paulo. No momento eu nada respondi, apenas tentei rasgar a fita.


Tiago André Vargas

31.05.2015


Lagoa do Bonfim, longe da Bahia. Rio Grande do Norte.

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