Sempre
fui um bom carona
Ao
volante, meu irmão mais velho
Torcia
o pescoço
Retorcia
um sorriso filogenético
Ao
me ver colocar o cinto
Eu
dizia
Mano
E
mostrava meus dentes cariados
Durante
a fuga do cheiro podre da minha boca
Um
cheiro que o mundo conhecia
Que
antecedia qualquer lembrança ou pensamento
Que
de mim fosse feito
Mas
meu irmão parecia não se importar
Talvez
até gostasse
Como
alguém aprende a gostar do hálito do seu cachorro
E
eu dizia
Mano
Eu
peguei uma música
E
ele ria
E
eu ria, pois me sentia um caçador
Algum
tipo de caçador de sonhos
Ou
mesquinharias belas da vida
Que
não pertenciam a nós
É
mesmo? O que você pegou?
Tocou
naquela rádio que você me mostrou, apertei o rec bem rápido, peguei ela inteira
Coloca
aí então
E
eu colocava
Eu
olhava fixamente para o rosto do meu irmão
E
eu conseguia identificar alguns traços da minha mãe
E
outros que pareciam ser exclusivos nossos
Como
o queixo
E
desprezar os outros irreconhecíveis
Que
só poderiam ser dos pais
Que
ambos desconhecemos
Um
coral abria a canção
Eu
observava fixamente as expressões do meu irmão
Ele
me parecia um quadro sem moldura
Enquanto
o mundo sempre o viu como uma moldura sem quadro
Um
oco desprovido de carne
Eu
sempre tentava
Tentava
capturar as emoções que a música poderia suscitar
Ele
sempre foi tão sensível
Guardava
um punhado de argila no seu quarto
Impedia
que as pessoas a tocassem
E
tudo isso não era em vão
As
sobrancelhas caíram
Com
a música
Como
folhas
Com
a música
Os
olhos se apequenaram
Como
os sonhos da vida adulta
E
um inseto andava pelo vidro do carro
Na
parte externa
Indiferente
com o rumo da vida
Ao
virar o rosto, chorava um pouco
Tirei
a fita
Eu
já sou homem, disse
Você
não deveria estar nessa, mano
A
mãe precisa
Ele
me alcançou o 38
Te
espero ali, naquela bomba
Saí
do carro, o posto estava vazio, nos dias de chuva sempre tem menos movimento
Meu
irmão empurrou a fita de volta
O
som foi interrompido por dois tiros
Meu
irmão ao volante
Olha
para o banco do carona
Vazio
No
de trás, nossa mãe está de óculos escuros
Somente
ele chora
No
seu quarto um inseto caminha
Sobre
a argila, seca
Mas
já ninguém pode ver
Tiago André Vargas
22.10.2017
Cara, li seu poema aqui no trabalho e estou estarrecida com ele. Cara, que coisa maravilhosa, guardei ele na lista dos favoritos. Tem aquele tom que eu gosto, meio tétrico. Eu diria que se o Rubem Fonseca escrevesse poema, seria esse. Excelente!!
ResponderExcluirUm grande abraço!
Ana Idris
Ana, obrigado por despender seu tempo nessa leitura e, ainda mais, pelo comentário. Fico muito feliz em saber.
ExcluirA saber: Feliz ano novo até hoje é um dos meus textos preferidos.
Sempre leio seus textos, aliás...
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