domingo, 24 de fevereiro de 2019

Recender





Não fomos de muitas palavras
Mas seus olhos criaram uma sentença completa
Pelas narinas crescidas o pulo da lua o passo tímido de um
Quadrúpede que amava a fase minguante
Descrevendo meu cheiro que não estava mais lá
Sabão em pó de estrela
Fuligem industrial no vento sem par
Papel reciclado com tinta de palavra
Cruzadas
Pelas guerras de amor e as mortes justificadas pela crença
Casco de cabra
O silêncio da fé e o carinho na ausência da razão
Fogueira de corpos e nosso coração de pedra e madeira
O desconhecido passou por estas terras
Engravidou a muitos
Um pouco antes do deserto arborescente
Da cultura
Mas meu cheiro não era de muitas palavras
Mas seu olfato não era de muitos afetos
Ainda assim
Escolhiam-se sempre e dançavam no vazio

A cama vazia é um velocímetro quebrado
A distância dos meus dedos é um piano apodrecendo na rodoviária
O teu cabelo as teclas negras
Aquela musiqueta do Debussy que abria caminho da raiz à ponta
Ecoa
Na minha cabeça
O vagão se distancia
Eu cruzo minhas botas com certo estilo
Presto atenção nesse certo estilo
Estas botas são tudo que tenho para lutar com a solidão
O couro lustro revela a serventia que surge na morte das coisas
Meu corpo e meus sonhos poderiam abraçar o pé de alguém
Você na varanda com uma faca na mão
Uma laranja na outra
O fiapo entre os incisivos
O silêncio incisivo
Uma atmosfera cortante
Mas minha cabeça é de muitas palavras
E ela conversa sem parar
Com os trilhos de todos os caminhos
Que já não podem ser feitos

Qual silêncio caberia ainda fazermos?

O trem apita vigoroso
Como quem impõe silêncio com um grito
Joga fumaça às nuvens
Você se espreguiça
Conta os dedos dos pés
Faz um jogo consigo
Se a noite trouxer lua nova escreverá um poema e o enterrará
Nas raízes de uma nogueira
Se lua crescente sairá à procura de um pássaro que não saiba cantar
O manterá em cativeiro até a tristeza desabrochar algum som
Se lua cheia procurará entre postos de gasolina o indivíduo de olhar mais triste
Se gostar de Dylan e cair uma chuva forte durante a noite
Pela manhã uma menina brotará nas terras esquecidas da América Latina
Se lua minguante fechará os olhos e abrirá a janela
Meu cheiro construirá os trilhos às lembranças que eclodirão no desejo de fuga
De outras luas
Mas foi e será sempre
A mesma lua

O trem apita vigoroso
Uma roupa no varal sacode
Uma fábrica incendeia
Uma caneta se parte e a tinta vaza entre os dedos azuis
O trem apita vigoroso

Nós nunca fomos de muitas palavras
Nosso tempo não era precioso
O futuro residia no cheiro do presente
O passado despejado pela saudade da consciência
Forjada na dor enquanto o trem se distanciava
Com você e nós
Pés velozes e vagões leves
Você é a razão pela qual estou viajando
Você é a razão pela qual me tornei viajante
Para grudar em mim o olor do mundo
Preso no meu corpo de couro
Amaciado na haste de uma flor
Um botão fechado esperando em silêncio
Pela eternidade
O toque do seu nariz


Tiago André Vargas
29.04.2018


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