domingo, 18 de dezembro de 2011

Toma-te

Nasci sem mim.
Cresci no meio da serragem deixada pelo serrote de dente gasto, idônea a fuga da lâmina que ameaça torrar o dedo. O polegar que apóia.
 Corri por vários anos prescindidos, bebendo vinho ou coisa que o valha por não ansiar champagne vencida, ignorando a falta dos copos de cristais por não ter com quem brindar, olhando para o mar no meio de uma multidão branca que grita feliz ano novo enquanto na singularidade do meu peito tudo parece velho e fotocopiado, como tantos anos que me passaram enquanto eu não tinha nascido.
Eu nasci sem mim. Encontrei-me apenas depois de muito tempo.
Deixei-me desabrigado em chuva de ignorância sem rolo de pão, mas sempre seguindo a massa. Observei outro mesmo eu fazer o que lhe disseram ser correto. Assisti bem de longe, desinteressado.
Até que um dia senti pena. Pena de verdade, desditoso pra cacete. Fui até mim e tomei-me, peguei-me no colo como um padrasto faz pela primeira vez com o filho que não o pertence. Não havia como ser natural, mas nem por isso foi indigno. Foi como foi.
Quando consegui nascer em mim, tomar-me por dentro, buscar aquela matéria transeunte dando-lhe alma, por um momento pensei que havia encontrado resposta.
Em segundo momento odiei a limitação que aquele corpo me impôs em trágica análise que tudo não passava de ação e reação em escala infinitesimal, desde embriológica até revolucionária escolha amorosa, tudo era um dominó principado montado ruidosamente por uma criança de 9 anos chamada destino.
Em terceiro momento aceitei a mim mesmo e abri um livro para fugir da sina de ser quem tu és. Apenas consegui tomar-me quando percebei que meu Eu era livre. Liberto e excomungado pela ideológica de ser algo unificado e inteligível, logo, consegui revelar-me a mim.
Descobri-me perdido... E me encontrei sem saber.

Autoria de Tiago André Vargas
Foto encontrada aqui.

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