domingo, 12 de maio de 2013

Devolver o entardecer





Já fui olhos. Já fui água. Já fui dança. Já fui brasa.
Acostumei-me ser feixe de luz para viver no clarão e dormir seguro.
Achei que não precisava devolver, como tantas coisas.
Depois das páginas viradas. Reviradas. Arrancadas. Escritas somente no verso, amassadas e largadas na rua principal de uma cidade secundária, pisoteadas por pés terciários.
Catarros.
Bitucas.
Um poema que escrevi sobre quadriláteros.
Alguém sente esperança.
Já fui esperança.
Já fui água.
Mas agora eu tiro do bolso da minha camisa o entardecer. Certa pompa. Como outrora, sendo dentes, fiz com bolas de gude.
Só que hoje eu sou água.
Água salgada.
Fora do mar.
Lágrimas sem choro. Molhado estou por dentro apesar de sentir-me tão seco.
Já fui seco.
Mas agora é hora de devolver o entardecer.
Depois da vida tanto brilhar para mim.
Depois de tudo que fui nem a sofreguidão de subir uma escada assegura-me que realmente fui algo. Mas eu tenho um passado. Sinto. Como é possível sentir o vento.
Mas agora devolvo o entardecer.
Grato pelo brilho que me coube.
Permito algo.
Que troquem o canal.
Que roubem meus talheres.
Que rejeitem meu amor.
O sol se foi, agora é só uma questão de tempo.
Tanto faz.
Palavras.
Ponteiros.
Rodas.
Cartas.
Vasos.
Flores e sanitários.
Retorno.
Volta.
Outra volta.
De volta.
Em volta.
Devolvo o entardecer para cair a escuridão no tempo de ser o que me cabe.

Novamente abraço minha sombra e junto com ela me desfaço.


Tiago André Vargas




Um comentário:

  1. Foi como se você tirasse de dentro de você, colocasse em uma pequena caixa e transferisse cuidadosamente tudo pra dentro de mim. Simplesmente ótimo André, parabéns!

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