Desde
que iniciei a transcrever uma passagem para cada livro lido, este foi o mais
difícil. Édipo Rei, de Sófocles, na qualidade dramatúrgica das clássicas tragédias
gregas, principia com falas enigmáticas de intensidade suprimida, conduzindo
assim, lenta e sabiamente, o drama. Ao final a carne se abre, junto com a
intensidade das falas e ações. É teatro, vivo, de um sangue humano que após
dois milênios continua com o mesmo gosto.
Vamos
à passagem:
Creonte:
Direi, pois, o que me disse o deus. Ordena-nos Apolo que apaguemos a mancha que
alastrou na nossa terra, que a façamos desaparecer, em lugar de a deixarmos
aumentar; devemos recear que se torne inexpiável.
Édipo:
E de que espécie é esse mal? Que expiação?…
Creonte:
Expulsando um homem dos nossos territórios ou vingando o crime com o crime,
porque é um crime que está arruinando a cidade.
Édipo:
Contra que homem foi cometido o crime de que fala o oráculo?
Creonte:
Senhor, foi contra Laio, outrora rei da nossa terra, antes de seres tu o chefe
da cidade.
Édipo:
Já ouvi falar disso; eu nunca o vi.
Creonte:
O oráculo ordena claramente que sejam castigados os que assassinaram esse
homem.
Édipo:
Em que terra estão? Como se há-de encontrar qualquer vestígio desse crime tão
antigo?
Creonte:
Diz o oráculo que há vestígios na cidade. Só se encontra o que se busca; o que
nos é indiferente, de nós foge.
Sobre
a passagem: nada de dramaticidade. Apenas uma fala para salientar como é genioso
‘buscar’. E, caso aquilo que se busque não seja passível de ação (seja por
limitação, ou por reflexão) é imprescindível, mesmo dentro da inanição, reconhecer
o que gostaríamos de alcançar. Pois, se a ‘sorte’ nos visitar, só a
reconheceremos como ‘sorte’ se já estivermos imbuídos com o gosto deste
encontro. Sem isso, não a perceberíamos como tal. Ainda (e principalmente): após o encontro, a
busca continua. A realidade nunca é estável, permanecer imutável é dar asas
para a indiferença, que, foge. Muitas vezes levando consigo o que, após perdermos,
não nos era dispensável. A única maneira de vencer a indiferença natural que
decorre sobre o ‘achado’ é recriando o seu significado, ou então, a
maneira de vê-lo (recriando a si próprio). Édipo vai dizer: “Que me importa ver, se nada me era
agradável à vista?”. Nesse ponto do drama, Édipo era incapaz de atribuir
qualquer significado, nada do que poderia ver conversaria com a sua existência.
Para isso, mudou sua maneira de enxergar: Arrancou os próprios olhos.
27.12.2015
Tiago André Vargas
![]() |
Louis Bouwmeester como Édipo, na produção alemã de "Oedipus the King" - 1896 |