Nunca
Mais.
Ele
escutou um som horrendo pairando sobre os ouvidos como se a noite entrasse em
sua mente através deles. Aquele velho som... Era o tempo de correr.
Os
cadarços desamarrados chicoteando-se ao chão, pesados pela fétida água do céu
ingrato nessa insana disparada enquanto ele só conseguia pensar no peito se
abrindo já ofegante e seus pés errantes medrosos em tropeçar, chutando o ar e
depois voltando contra o solo jogando-o para frente.
Então
ele surgiu.
Alto
e magro, talvez atingisse a marca dos dois metros de altura. Carregava sobre a
cabeça um chapéu comprido com estreitas listras brancas a percorrer sobre sua
aba. Os óculos escuros tinham como lente dois pequenos e perfeitos círculos
negros e seu sorriso era pontiagudo e arqueado como o de uma raposa. Através
dele disse:
-
Olá garoto.
-
Quem é...
-
Cale-se! Meus ouvidos não são aptos a escutar essa sua voz que mais parece o
grunhido de um leitão ao ver uma faca desembainhada. Noto que és estúpido,
apesar do coração puro, pois ao invés de pensar no que estou aqui a fazer
somente me julga pelas vestes e não consegue formular outra pergunta além da
infame “Quem é você?” Não fale garoto! Primeiro por causa de sua voz
usurpada pelo seu espírito enfraquecido e segundo por virtude dessa pergunta,
que assola meu íntimo, como se alguém soubesse quem é ou como explicar quem se
julga ser. Portanto, ao máximo e de leve contragosto, posso dizer-lhe como me
chamo: Nunca Mais. Não puxe o ar dessa forma! Já disse que não quero ouvir tua
voz! Bem, como ia dizendo antes de você esboçar pronunciar alguma coisa, me
chamo Nunca Mais. Estou aqui nesse mundo idiota com essa chuva sem fim porque
você a criou, sendo este o teu sonho. Porque sonhar com tanta chuva garoto? Não
responda! Eu sei a resposta e minha pergunta foi na verdade uma crítica com um
ponto de interrogação retardatário. Bem, antes que essa chuva acabe com meus
sapatos vou cumprir a minha missão. Bem, só mais uma coisa antes de dizê-la
finalmente, quero lembrar que essa não é a parte do sonho que você acorda com
uma leve lembrança e ainda excitado tenta conjecturar os fatos para lembrar-se
dele completamente. Essa é a parte do sonho que fica intrínseca em sua mente
vagarosa e, logo, torna completamente inútil essa observação tendo em vista que
jamais irá se lembrar dela. Não é engraçado garoto? Não! Muito bem, vejo que
nem tenta mais responder. Bom, vamos ao protocolo: Eu, Nunca Mais, estou aqui
para lhe ensinar algo. Hoje as 14:22 você disse as palavras mágicas com
amargura, preferiu meu nome com ardor, disse que nunca mais iria viver outro
dia dessa forma. Bem, você precisa aprender a valorizar certas coisas. Então,
com os poderes em mim investidos e diante da sutil compaixão que tive em
relação a sua pessoa, especialmente por ajudar sua vizinha idosa que também
mora sozinha, irei semear algo em tua alma para que não tenhas o fim trágico
que estás predestinado.
Desta
forma o homem alto girou sua capa e desapareceu.
Ele
escutou um som horrendo pairando sobre os ouvidos como se a noite entrasse em
sua mente através deles. Aquele velho som... Era o tempo de correr.
Os
cadarços desamarrados chicoteando-se ao chão, pesados pela fétida água do céu
ingrato nessa insana disparada enquanto ele só conseguia pensar no peito se
abrindo já ofegante e seus pés errantes medrosos em tropeçar, chutando o ar e
depois voltando contra o solo jogando-o para frente.
Então
ele surgiu.
Em
sua frente havia um homem com as pernas amputadas, um tronco imóvel sobre a
calçada molhada balançando seus braços exaustivamente que pareciam estar
colados ao corpo. Assim que teve a atenção do garoto disse rapidamente:
-
Por que corres menino?
-
Corro para fugir da minha vida.
-
Por quê?
-
Você não sabe pelo que eu passei...
- Na
verdade eu sei. Mas, o que sentes olhando para mim?
-
Pena... Nunca vi um homem que sofrera tamanho acidente.
- E
o que farias no meu lugar? O mesmo que pretende fazer no seu?
O
garoto calou. O homem ao chão pareceu romper um casulo que lhe cercava e
surpreendentemente ficou de pé, como se sofresse alguma mutação congênita.
Agora, altivo e imponente proferiu:
-
Existem duas formas de viver a vida meu filho, acreditando que não existem
milagres ou acreditando que todas as coisas são um milagre. Einstein, aquele
boçal, disse isso. Agora sinta suas pernas. Sinta o cadarço molhado e
desamarrado grudado nela. Sinta a tua juventude e o tempo que ainda lhe é
complacente. Respire fundo, dê meia volta e pare de correr. Amanhã será outro
dia. Verás.
O
garoto acordou assustado. Que sonho mais incoerente. Durante o banho não
conseguia pensar em outra coisa, vestiu suas roupas e partiu para o trabalho
que tanto odiava.
Entretanto,
assim que saiu da porta de sua casa e foi acariciado pelo sol sentiu algo
diferente. Uma felicidade guardada nos confins de sua alma percorrendo um
labirinto. Dobrou a esquina e viu um homem de chapéu alto e óculos escuros
sentado na calçada, mendigando com as pernas amputadas a mostra. Apesar de ter
o dinheiro contado para pagar suas despesas e acreditar ser inútil o ato de
lançar uma moeda a um pedinte, ele assim o fez, com uma de 25 centavos. O homem
ao chão pegou-a no ar agilmente e disse fazendo menção ao sol:
-
Hoje será um lindo dia senhor.
O
jovem parou por um momento, sorriu, e por fim disse:
-
Sim, será um lindo dia.
E o
jovem nunca mais colocou seus pés sobre nenhum parapeito.
Autoria de Tiago André Vargas
Foto encontrada aqui.
Nenhum comentário:
Postar um comentário