sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Nunca Mais


Nunca Mais.

Ele escutou um som horrendo pairando sobre os ouvidos como se a noite entrasse em sua mente através deles. Aquele velho som... Era o tempo de correr.
Os cadarços desamarrados chicoteando-se ao chão, pesados pela fétida água do céu ingrato nessa insana disparada enquanto ele só conseguia pensar no peito se abrindo já ofegante e seus pés errantes medrosos em tropeçar, chutando o ar e depois voltando contra o solo jogando-o para frente.
Então ele surgiu.
Alto e magro, talvez atingisse a marca dos dois metros de altura. Carregava sobre a cabeça um chapéu comprido com estreitas listras brancas a percorrer sobre sua aba. Os óculos escuros tinham como lente dois pequenos e perfeitos círculos negros e seu sorriso era pontiagudo e arqueado como o de uma raposa. Através dele disse:

- Olá garoto.
- Quem é...
- Cale-se! Meus ouvidos não são aptos a escutar essa sua voz que mais parece o grunhido de um leitão ao ver uma faca desembainhada. Noto que és estúpido, apesar do coração puro, pois ao invés de pensar no que estou aqui a fazer somente me julga pelas vestes e não consegue formular outra pergunta além da infame “Quem é você?” Não fale garoto! Primeiro por causa de sua voz usurpada pelo seu espírito enfraquecido e segundo por virtude dessa pergunta, que assola meu íntimo, como se alguém soubesse quem é ou como explicar quem se julga ser. Portanto, ao máximo e de leve contragosto, posso dizer-lhe como me chamo: Nunca Mais. Não puxe o ar dessa forma! Já disse que não quero ouvir tua voz! Bem, como ia dizendo antes de você esboçar pronunciar alguma coisa, me chamo Nunca Mais. Estou aqui nesse mundo idiota com essa chuva sem fim porque você a criou, sendo este o teu sonho. Porque sonhar com tanta chuva garoto? Não responda! Eu sei a resposta e minha pergunta foi na verdade uma crítica com um ponto de interrogação retardatário. Bem, antes que essa chuva acabe com meus sapatos vou cumprir a minha missão. Bem, só mais uma coisa antes de dizê-la finalmente, quero lembrar que essa não é a parte do sonho que você acorda com uma leve lembrança e ainda excitado tenta conjecturar os fatos para lembrar-se dele completamente. Essa é a parte do sonho que fica intrínseca em sua mente vagarosa e, logo, torna completamente inútil essa observação tendo em vista que jamais irá se lembrar dela. Não é engraçado garoto? Não! Muito bem, vejo que nem tenta mais responder. Bom, vamos ao protocolo: Eu, Nunca Mais, estou aqui para lhe ensinar algo. Hoje as 14:22 você disse as palavras mágicas com amargura, preferiu meu nome com ardor, disse que nunca mais iria viver outro dia dessa forma. Bem, você precisa aprender a valorizar certas coisas. Então, com os poderes em mim investidos e diante da sutil compaixão que tive em relação a sua pessoa, especialmente por ajudar sua vizinha idosa que também mora sozinha, irei semear algo em tua alma para que não tenhas o fim trágico que estás predestinado.

Desta forma o homem alto girou sua capa e desapareceu.

Ele escutou um som horrendo pairando sobre os ouvidos como se a noite entrasse em sua mente através deles. Aquele velho som... Era o tempo de correr.
Os cadarços desamarrados chicoteando-se ao chão, pesados pela fétida água do céu ingrato nessa insana disparada enquanto ele só conseguia pensar no peito se abrindo já ofegante e seus pés errantes medrosos em tropeçar, chutando o ar e depois voltando contra o solo jogando-o para frente.
Então ele surgiu.
Em sua frente havia um homem com as pernas amputadas, um tronco imóvel sobre a calçada molhada balançando seus braços exaustivamente que pareciam estar colados ao corpo. Assim que teve a atenção do garoto disse rapidamente:

- Por que corres menino?
- Corro para fugir da minha vida.
- Por quê?
- Você não sabe pelo que eu passei...
- Na verdade eu sei. Mas, o que sentes olhando para mim?
- Pena... Nunca vi um homem que sofrera tamanho acidente.
- E o que farias no meu lugar? O mesmo que pretende fazer no seu?

O garoto calou. O homem ao chão pareceu romper um casulo que lhe cercava e surpreendentemente ficou de pé, como se sofresse alguma mutação congênita. Agora, altivo e imponente proferiu:

- Existem duas formas de viver a vida meu filho, acreditando que não existem milagres ou acreditando que todas as coisas são um milagre. Einstein, aquele boçal, disse isso. Agora sinta suas pernas. Sinta o cadarço molhado e desamarrado grudado nela. Sinta a tua juventude e o tempo que ainda lhe é complacente. Respire fundo, dê meia volta e pare de correr. Amanhã será outro dia. Verás.

O garoto acordou assustado. Que sonho mais incoerente. Durante o banho não conseguia pensar em outra coisa, vestiu suas roupas e partiu para o trabalho que tanto odiava.
Entretanto, assim que saiu da porta de sua casa e foi acariciado pelo sol sentiu algo diferente. Uma felicidade guardada nos confins de sua alma percorrendo um labirinto. Dobrou a esquina e viu um homem de chapéu alto e óculos escuros sentado na calçada, mendigando com as pernas amputadas a mostra. Apesar de ter o dinheiro contado para pagar suas despesas e acreditar ser inútil o ato de lançar uma moeda a um pedinte, ele assim o fez, com uma de 25 centavos. O homem ao chão pegou-a no ar agilmente e disse fazendo menção ao sol:

- Hoje será um lindo dia senhor.

O jovem parou por um momento, sorriu, e por fim disse:

- Sim, será um lindo dia.

E o jovem nunca mais colocou seus pés sobre nenhum parapeito.

Autoria de Tiago André Vargas
Foto encontrada aqui.

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