Publicado
no ano 2000 pelo escritor português José Saramago (1922 - 2010), A caverna é um
romance que projeta as mesmas sombras do antológico mito da caverna de Platão,
amplamente referenciado e enraizado no desenvolvimento da história. Seria uma
injúria almejar condensar o que foi dito em 350 páginas em um parágrafo, mas,
falando apenas de essência, e, admitindo que seja possível descrever um
sentimento com uma cor, ficamos com o medo e a ilusão. Essas duas
cores sabem dançar, principalmente juntas: formam um simbiótico par. A ilusão
pode nascer do medo, como uma legítima filha, processo que consideramos
natural, uma vez que o medo desmancha as percepções; Mas ainda a ilusão poderá
nascer da segurança: dentro do primevo instinto animalesco “agora estou vivo e,
se nada mudar, continuarei vivo”. Essa ilusão filha de um sentimento aparentemente
positivo tem raízes mais amplas, pois agora sua razão de existir é o curioso
propósito de sustentar o medo (não mais nascer dele). O medo, envaidecido e aliviado
das dores do parto, a presenteia com um par de brincos chamado inação; presente
que paralisará qualquer possível desejo de ação que olhar para a ilusão, garantindo
ainda a temível lembrança de quem a presenteou. Em outras palavras: Criamos uma
ilusão para evocar o medo e não agimos para legitimar este medo, em
contrapartida, obtém-se a segurança do umbigo. Isso foi algo que o livro me fez
pensar quando resolvi falar do livro. Pois é. Não sei escrever resenhas.
Adentrando
na caverna e na história de Saramago, com descrições mais objetivas, destaco as
seguintes sombras que o livro aborda: O capitalismo em uma sociedade em que as
pessoas se tornam suas profissões (ilusão que irá se dilatar no abandono
angustiante da autopercepção e a cognição da complexidade dos nossos impulsos e
sentimentos, agora reduzidos a uma função: em nada diferimos de um prato ou um jarro,
apenas para dar como exemplo objetos que envolvem o ofício do personagem),
também há a pesada sombra da ilusão do passado para esmorecer o presente, o
medo do amor (neste caso leia-se “entrega”) como engodo que levará a uma dor
aparentemente precisa e, para evitá-la, surge a criação da ilusão de uma fobia
ao amor (novamente a dança da ilusão com o medo, tema que Saramago escreve como
quem voa). O medo e a ilusão. Duas sombras que se fazem sombra. Fora da caverna,
talvez haja sol.
Transcrição
de um trecho do livro (2000, Editora Companhia das Letras):
Note-se
que, ao nascermos, os dedos ainda não têm cérebros, vão-nos formando pouco a
pouco com o passar do tempo e o auxílio do que os olhos vêem. O auxílio dos
olhos é importante, tanto quanto o auxílio daquilo que por eles é visto. Por
isso o que os dedos sempre souberam fazer de melhor foi precisamente revelar o
oculto. O que no cérebro possa ser percebido como conhecimento infuso, mágico
ou sobrenatural, seja o que for que signifiquem sobrenatural, mágico e infuso,
foram os dedos e os seus pequenos cérebros que lho ensinaram. Para que o
cérebro da cabeça soubesse o que era a pedra, foi preciso primeiro que os dedos
a tocassem, lhe sentissem a aspereza, o peso e a densidade, foi preciso que se
ferissem nela. Só muito tempo depois o cérebro compreendeu que daquele pedaço
de rocha se poderia fazer uma coisa a que chamaria faca e uma coisa a que
chamaria ídolo. O cérebro da cabeça andou toda a vida atrasado em relação às
mãos, e mesmo nestes tempos, quando nos parece que passou à frente delas, ainda
são os dedos que têm de lhe explicar as investigações do tacto, o
estremecimento da epiderme ao tocar o barro, a dilaceração aguda do cinzel, a
mordedura do ácido na chapa, a vibração subtil de uma folha de papel estendida,
a orografia das texturas, o entramado das fibras, o abecedário em relevo do
mundo. E as cores. Manda a verdade que se diga que o cérebro é muito menos
entendido em cores do que crê. É certo que consegue ver mais ou menos
claramente visto o que os olhos lhe mostram, mas as mais das vezes sofre do que
poderíamos designar por problemas de orientação sempre que chega a hora de
converter em conhecimento o que viu. Graças à inconsciente segurança com que a
duração da vida acabou por dotá-lo, pronuncia sem hesitar os nomes das cores a
que chama elementares e complementárias, mas imediatamente se perde, perplexo,
duvidoso, quando tenta formar palavras que possam servir de rótulos ou dísticos
explicativos de algo que toca o inefável, de algo que roça o indizível, aquela
cor ainda de todo não nascida que, com o assentimento, a cumplicidade, e não
raro a surpresa dos próprios olhos, as mãos e os dedos vão criando o que
provavelmente nunca chegará a receber o seu justo nome. Ou talvez já o tenha,
mas esse só as mãos os conhecem, porque compuseram a tinta como se estivessem a
decompor as partes constituintes de uma nota de música, porque se sujaram na
sua cor e guardaram a mancha no interior profundo da derme, porque só com esse
saber invisível dos dedos se poderá alguma vez pintar a infinita tela dos
sonhos. Fiado do que os olhos julgaram ter visto, o cérebro da cabeça afirma
que, segundo a luz e as sombras, o vento e a calma, a humidade e a secura, a
praia é branca, ou amarela, ou dourada, ou cinzenta, ou roxa, ou qualquer coisa
entre isto e aquilo, mas depois vêm os dedos e, com um movimento de recolha,
como se estivesse a ceifar uma seara, levantam do chão todas as cores que há no
mundo. O que parecia único era plural, o que é plural sê-lo-á ainda mais. Não é
menos verdade, contudo, que na fulguração exata de um só tom, ou na sua musical
modulação, estão presentes e vivos todos os outros, tanto os das cores que já
têm nome como os das que ainda o esperam, do mesmo modo que uma extensão de
aparência lisa poderá estar cobrindo, ao mesmo tempo que os manifesta, os rastos
de todo o vivido e acontecido na história do mundo. Toda a arqueologia de
materiais é uma arqueologia humana. O que este barro esconde e mostra é o
trânsito do ser no tempo e a sua passagem pelos espaços, os sinais dos dedos,
as raspaduras das unhas, as cinzas e os tições das fogueiras apagadas, os ossos
próprios e alheios, os caminhos que eternamente se bifurcam e se vão
distanciando e perdendo uns dos outros. Este grão que aflora à superfície é uma
memória, esta depressão a marca que ficou de um corpo deitado. O cérebro
perguntou e pediu, a mão respondeu e fez. Marta disse-o de outra maneira, Já
lhe apanhou o jeito.
11.09.2015
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