sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Breve ensaio sobre medo e ilusão, provocado pelo livro A caverna, de José Saramago



Publicado no ano 2000 pelo escritor português José Saramago (1922 - 2010), A caverna é um romance que projeta as mesmas sombras do antológico mito da caverna de Platão, amplamente referenciado e enraizado no desenvolvimento da história. Seria uma injúria almejar condensar o que foi dito em 350 páginas em um parágrafo, mas, falando apenas de essência, e, admitindo que seja possível descrever um sentimento com uma cor, ficamos com o medo e a ilusão. Essas duas cores sabem dançar, principalmente juntas: formam um simbiótico par. A ilusão pode nascer do medo, como uma legítima filha, processo que consideramos natural, uma vez que o medo desmancha as percepções; Mas ainda a ilusão poderá nascer da segurança: dentro do primevo instinto animalesco “agora estou vivo e, se nada mudar, continuarei vivo”. Essa ilusão filha de um sentimento aparentemente positivo tem raízes mais amplas, pois agora sua razão de existir é o curioso propósito de sustentar o medo (não mais nascer dele). O medo, envaidecido e aliviado das dores do parto, a presenteia com um par de brincos chamado inação; presente que paralisará qualquer possível desejo de ação que olhar para a ilusão, garantindo ainda a temível lembrança de quem a presenteou. Em outras palavras: Criamos uma ilusão para evocar o medo e não agimos para legitimar este medo, em contrapartida, obtém-se a segurança do umbigo. Isso foi algo que o livro me fez pensar quando resolvi falar do livro. Pois é. Não sei escrever resenhas.
Adentrando na caverna e na história de Saramago, com descrições mais objetivas, destaco as seguintes sombras que o livro aborda: O capitalismo em uma sociedade em que as pessoas se tornam suas profissões (ilusão que irá se dilatar no abandono angustiante da autopercepção e a cognição da complexidade dos nossos impulsos e sentimentos, agora reduzidos a uma função: em nada diferimos de um prato ou um jarro, apenas para dar como exemplo objetos que envolvem o ofício do personagem), também há a pesada sombra da ilusão do passado para esmorecer o presente, o medo do amor (neste caso leia-se “entrega”) como engodo que levará a uma dor aparentemente precisa e, para evitá-la, surge a criação da ilusão de uma fobia ao amor (novamente a dança da ilusão com o medo, tema que Saramago escreve como quem voa). O medo e a ilusão. Duas sombras que se fazem sombra. Fora da caverna, talvez haja sol.


Transcrição de um trecho do livro (2000, Editora Companhia das Letras):

Note-se que, ao nascermos, os dedos ainda não têm cérebros, vão-nos formando pouco a pouco com o passar do tempo e o auxílio do que os olhos vêem. O auxílio dos olhos é importante, tanto quanto o auxílio daquilo que por eles é visto. Por isso o que os dedos sempre souberam fazer de melhor foi precisamente revelar o oculto. O que no cérebro possa ser percebido como conhecimento infuso, mágico ou sobrenatural, seja o que for que signifiquem sobrenatural, mágico e infuso, foram os dedos e os seus pequenos cérebros que lho ensinaram. Para que o cérebro da cabeça soubesse o que era a pedra, foi preciso primeiro que os dedos a tocassem, lhe sentissem a aspereza, o peso e a densidade, foi preciso que se ferissem nela. Só muito tempo depois o cérebro compreendeu que daquele pedaço de rocha se poderia fazer uma coisa a que chamaria faca e uma coisa a que chamaria ídolo. O cérebro da cabeça andou toda a vida atrasado em relação às mãos, e mesmo nestes tempos, quando nos parece que passou à frente delas, ainda são os dedos que têm de lhe explicar as investigações do tacto, o estremecimento da epiderme ao tocar o barro, a dilaceração aguda do cinzel, a mordedura do ácido na chapa, a vibração subtil de uma folha de papel estendida, a orografia das texturas, o entramado das fibras, o abecedário em relevo do mundo. E as cores. Manda a verdade que se diga que o cérebro é muito menos entendido em cores do que crê. É certo que consegue ver mais ou menos claramente visto o que os olhos lhe mostram, mas as mais das vezes sofre do que poderíamos designar por problemas de orientação sempre que chega a hora de converter em conhecimento o que viu. Graças à inconsciente segurança com que a duração da vida acabou por dotá-lo, pronuncia sem hesitar os nomes das cores a que chama elementares e complementárias, mas imediatamente se perde, perplexo, duvidoso, quando tenta formar palavras que possam servir de rótulos ou dísticos explicativos de algo que toca o inefável, de algo que roça o indizível, aquela cor ainda de todo não nascida que, com o assentimento, a cumplicidade, e não raro a surpresa dos próprios olhos, as mãos e os dedos vão criando o que provavelmente nunca chegará a receber o seu justo nome. Ou talvez já o tenha, mas esse só as mãos os conhecem, porque compuseram a tinta como se estivessem a decompor as partes constituintes de uma nota de música, porque se sujaram na sua cor e guardaram a mancha no interior profundo da derme, porque só com esse saber invisível dos dedos se poderá alguma vez pintar a infinita tela dos sonhos. Fiado do que os olhos julgaram ter visto, o cérebro da cabeça afirma que, segundo a luz e as sombras, o vento e a calma, a humidade e a secura, a praia é branca, ou amarela, ou dourada, ou cinzenta, ou roxa, ou qualquer coisa entre isto e aquilo, mas depois vêm os dedos e, com um movimento de recolha, como se estivesse a ceifar uma seara, levantam do chão todas as cores que há no mundo. O que parecia único era plural, o que é plural sê-lo-á ainda mais. Não é menos verdade, contudo, que na fulguração exata de um só tom, ou na sua musical modulação, estão presentes e vivos todos os outros, tanto os das cores que já têm nome como os das que ainda o esperam, do mesmo modo que uma extensão de aparência lisa poderá estar cobrindo, ao mesmo tempo que os manifesta, os rastos de todo o vivido e acontecido na história do mundo. Toda a arqueologia de materiais é uma arqueologia humana. O que este barro esconde e mostra é o trânsito do ser no tempo e a sua passagem pelos espaços, os sinais dos dedos, as raspaduras das unhas, as cinzas e os tições das fogueiras apagadas, os ossos próprios e alheios, os caminhos que eternamente se bifurcam e se vão distanciando e perdendo uns dos outros. Este grão que aflora à superfície é uma memória, esta depressão a marca que ficou de um corpo deitado. O cérebro perguntou e pediu, a mão respondeu e fez. Marta disse-o de outra maneira, Já lhe apanhou o jeito.

11.09.2015




Se gostou, compartilhe:

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Featured Post

Refri de laranja para quem tem sede de sonhos e outras epifanias que cabem numa fritadeira

“Algumas pessoas só conseguem dormir com algum peso sobre o corpo, eu era assim”. Foi o que eu escutei enquanto adormecia na rodoviá...