Lucy.
Chuquinhas.
Parada
em fronte a televisão assistindo ao desenho que ainda não sabia ser seu
preferido, a jovem menina sorriu.
Com
um salto se pós de pé.
Correu
na direção do pai que lia o jornal com uma larga xícara vermelha de café
pousada sobre a mesa. Esta parecia ser a única coisa verdadeiramente limpa
naquele local.
-
Pai! Eu sei qual presente quero no dia das crianças!
Desceu
o jornal de forma idônea ao seu olhar que a fitava por cima da armação dos
óculos há décadas quebrada na extremidade esquerda. Disse:
-
Estamos em abril...
-
E quanto é o dia das crianças?
-
Outubro.
-
E falta muito para outubro?
-
Falta.
-
Podemos antecipar?
-
Não.
Silêncio.
Curiosidade.
-
O que você vai querer?
-
Eu vou querer uma caveira papai!
Engasgou-se
com o café. Cuspiu um pouco sobre a mesa branca, uma mancha marrom. Feia. Lucy
sabia que era feio cuspir, ainda mais marrom.
-
O que te faz querer uma caveira menina doida?!
-
O desenho que assisti agora. Teve um cavalo que caiu num líquido estranho e
virou um grande esqueleto, bem branco. Depois mostrava sua caveira de cavalo
relinchando, achei que seria bonito ter uma destas na entrada do meu quarto,
assim como nos filmes de bang-bang que
tem uma caveira na entrada da cidade. Sabe?
-
Meu deus...
-
Aqueles filmes de bang-bang que tu
gosta. Sabe? Deve ser barata uma caveira, pois todo mundo que entra na cidade
poderia roubar ela, mas ninguém faz.
-
Talvez porque as pessoas tivessem medo!
-
Do que?
Extremamente
irritadiço, posto em contato com as petulantes perguntas da filha finalizou
aquele processo educacional com um estrondoso grito:
-
Você precisa se crismar logo! Suma daqui, vá! Peça para tua mãe te ensinar a
rezar uma ave-maria ao invés de ficar assistindo estes desenhos de merda.
Vamos! Suma!
Enquanto
Lucy segurava uma de suas chuquinhas e apertava os olhos para suprimir as
lágrimas, voltou-se para trás e viu seu pai alimentar o belo canário engaiolado
ao lado da sua cadeira na ponta da mesa.
O
único ser da casa detentor de apreço.
Ela
e sua mãe nada mais eram que dispendiosos animais mantidos a muito custo e
sacrifício.
O
canário não. Eram apenas algumas sementes. E ele cantava.
Quanto
a aquelas duas, o que faziam por ele?
Realidade.
Lucy
correu com seus pequenos sapatos até o terreno baldio ao lado de casa, percebendo-se
totalmente sozinha sentou-se sobre uma lata de tinta vazia e se pós a chorar.
Depois
de alguns instantes escondida atrás das palmas de suas mãos resolveu olhar
novamente o mundo ao seu redor.
Um
gato branco sentado exatamente em frente bocejava. Como se estivesse entediado
com sua soluçante tétrica demonstração de dor.
-
Mimi! Vem cá vem?
Como
se toda dor tivesse esvaído ela gesticulava com os dedos finos para que o belo,
porém esquelético gato viesse em sua direção.
Ele
foi.
Lucy
então agarrou-o com escancarado demoníaco semblante e levou-o contra a vontade junto
consigo, este muito relutante tentava fugir sem sucesso. Novamente os pequenos
sapatos corriam velozes, agora de volta para casa.
Abriu
o portão. Segurava-o em frente ao peito como uma arma que se empunha com as
duas mãos. Sabia que sua mãe estava no mercado, mas e seu pai? Precisava ter
certeza que ele não estava na cozinha para realizar seu malévolo desígnio.
Espiou
com metade do rosto e a cozinha estava vazia.
Ainda
carregando o gato que agora não mais se debatia, aparentemente confortado com
sua sorte, foi até o quarto do pai e percebeu que lá ele estava olhando alguma
revista de capa estampada com uma mulher de poucas vestes.
Perfeito.
Correu
para a cozinha. Fechou portas e janelas. Ciente que o gato não teria como
escapar, soltou-o.
Com
passos cautelosos, mas decididos, abriu a gaiola e pegou a leve custo o
canário. Segurou-o pelo pescoço, obrigou seu minúsculo crânio a lhe responder o
olhar. Lucy correu a língua dos dentes. O gato fez o mesmo.
Ocorreu.
-
Papai! Aconteceu uma tragédia!
Seu
pai nada respondeu.
-
O canário foi morto!
Muito
agitado e de calças mal postas o velho homem abriu a porta da cozinha e avistou
a janela aberta, um gato branco descarnado lambendo os beiços e a gaiola sobre
o chão quebrada. Penas amarelas. Mais nada.
Sobre
veemente ataque de fúria olhou ao seu redor a procura de algo que lhe servisse
como arma, sem nada encontrar correu na direção do gato para chutar-lhe até o inferno,
mas este, matreiro pelos anos comendo lixo na calçada, sabia o que fazer.
O
gato branco saltou pela janela correndo sobre o telhado externo.
O
velho homem caiu sobre a gaiola e se pôs a chorar.
Lucy
olhava fixamente para uma lata de achocolatado sobre a pia.
Fim
do ato.
Quando
outubro chegou Lucy ganhou de sua mãe uma boneca que falava eu te amo, boneca que custou 10 reais,
os outros 10 que recebera do marido para comprar o maldito presente ela gastou
com uma garrafa de vinho que, evidentemente, bebeu sozinha. Mas aquele não era
o seu presente. Contando somente com o amor daquela boneca que quebrou depois
de falar 8 vezes que lhe amava, Lucy recorreu para a lata de achocolatado que
ficava dentro do fundo falso do armário.
Destampou-a.
Uma
pequena e minúscula caveira de extremidade pontiaguda se revelou.
Branca
como a paz.
Branca
como a esperança.
Colocou-a
de frente para a porta trancada do quarto, assim como nas cidades fantasmas,
para que os desconhecidos ímpetos sombrios soubessem o que lhes aguardava se
entrassem em seu território.
Dormia
como um anjo, sem nunca receber boa noite.
Boa noite.
Autoria de Tiago André Vargas
Fotografia de Melissa.
Entre os contos/poesias que escreve, esse, é um de meus favoritos. Muito inteligente. Sua escrita e estilo são muito interessantes. Parabéns, se preferir assim.
ResponderExcluir