sábado, 5 de maio de 2012

O gato o copo o amor


Vocês são jovens. Mas eu não. Eu não preciso de um heterônimo chamado Álvaro detentor de 500 e poucos anos de próprio descobrimento para ter respaldo. Eu não quero erguer meu dedo. Nem ter a minha vez.
Se sair tudo bem, só feche a porta para não fugir meu gato. Ele é completamente estulto, um momento de liberdade e se joga na frente dos carros. Você acredita em uma coisa destas? Nem eu. Mas é assim que ele é.
Faz muito tempo desde que eu bebi minha esperança em copos trincados olhando para baixo se nenhum caco visitaria minha goela. Você bebe. Joga o copo contra a parede e observa um véu de pequenos vidros dançarem por uma fração de segundo, depois são os barulhos cintilantes, pequenos diamantes transviados e o silêncio novamente impera.
Para quê fazer isso? Perguntaria alguém de espírito maternal.
Eu não sei.
Talvez tenha me cansado de carregar líquidos de um lado para o outro, recipiente 1, recipiente 2, da garrafa pro copo, do copo pra boca, da boca para o belo quadro explicativo sobre o funcionamento do sistema urinário exemplificado por um homem entediado.
E no fim tudo para no vaso, ou assim esperamos nós, homens, enfadonhos PORÉM organizados.

Foi em um dia destes, quando um demônio engarrafado que não quis ser vomitado tomou conta de mim.
Eu deixei Álvaro fugir.
Álvaro é o nome do meu gato.
Assisti escorado no vão da porta aberta o felino alucinado correr até a rua e se jogar na frente de uma camionete que o levou junto consigo.
A camionete tinha um protetor frontal à frente do pára-choque. Foi ali que ele ficou encaixado como uma peça de jogo educativo. A camionete não freou, nem se quer buzinou. Nada.
Então Álvaro estava morto.
Então meu copo estava quebrado.
Movido pela comoção do álcool eu me pus a chorar percebendo fatidicamente que meu amor não era afinal tão metódico, não, eu não era o professor explicando o sistema urinário.
Eu amava meu copo, assim como amava meu gato.
Amava o fato de poder amá-los. Amava o fato de possuí-los, usufruindo cabalmente de toda sua dispensabilidade, agora, sem eles, não mais dispensáveis.
Eis o amor.
Eis as pequenas coisas que impedem a destruição.
Impedem a reconstrução.
Permitem apenas ser.
Eis.
O copo. O gato. O amor.
Autoria de Tiago André Vargas
Fotografia de Marco Freire.

Um comentário:

  1. "Faz muito tempo desde que eu bebi minha esperança em copos trincados olhando para baixo se nenhum caco visitaria minha goela. Você bebe. Joga o copo contra a parede e observa um véu de pequenos vidros dançarem por uma fração de segundo, depois são os barulhos cintilantes, pequenos diamantes transviados e o silêncio novamente impera."

    Fiquei emocionada! Pura poesia! Quando eu bebo, eu fico com alguns devaneios de cacos quebrados. Tenho vontade de fazer vitrais, pedaços de minh'alma em cacos de vidro, principalmente quando bebo por pura tristeza. O álcool aquece a alma, nos momentos de desamor...

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