sábado, 4 de fevereiro de 2012

Mulheres engarrafadas

Houve o tempo em que um decadente homem na posse de seu taxi ilegal deteve completa atenção de um mundo com dois olhos. Não sabendo muito bem o que fazer com esta, recorreu-se para onde vão todos os homens com muito ou pouco assunto: Mulheres.
O motorista ex-presidiário, ex-casado, ex-transeunte e ex-amado recorreu a bruta filosofia de quem cagou a vida inteira para os livros. Declamou com tamanha paixão e convicção suas certezas através do hálito destilado que homem nenhum neste mundo, seja por coragem ou certeza, haveria de reprimir uma só palavra do que ele disse. Com o pequeno e magro passageiro não foi diferente.
Percebendo que o motorista emanava de cada um dos infinitesimais poros um cheiro marcante, assemelho a vermute, e que este mesmo cheiro se materializava no estofamento do veículo, o passageiro teve a plena certeza que se mergulhasse o rosto no acento imperceptivelmente úmido sentiria a mesma embriaguez olfativa de enfiar o nariz em um gargalo. Antes que ele iniciasse seu discurso, o passageiro sabiamente aferiu que ele não trataria apenas das derivadas de Eva, mas também dos derivados do álcool.

- Sabe meu amigo, essa cidade é uma merda. Você olha para os lados e o que vê é entulho, não entulho de coisa bonita, mas entulho de coisa que não presta. Amontoados de plástico... Carro velho... TV quebrada... Tudo isso fica amontoado, parece que pra sempre. Eu passo todos os dias nessa rua, há mais de 7 anos... E todos os dias eu espero que alguém tenha levado aquela merda daquele carro. Mas ele nunca é levado. Já roubaram tudo que dava pra roubar nele, ficou só essa estrutura fodida com alguns mendigos dormindo dentro.

Nasceu um breve silêncio. Percebendo que seu passageiro era quieto o palestrante continuou:

- Talvez seja por isso que ninguém tira o carro... Justamente por causa dos mendigos... Hoje eles moram ali, certo? Mas se tirarem o carro... Onde aqueles dois mendigos vão se enfiar?

Novamente o silêncio se fez.

- Sabe cara, isso realmente me mata. Tudo é descaso. Por fim, eu te digo uma coisa cara... As mulheres são o nosso chão. Se não fossem as mulheres, não teria nada de bom nessa merda desse mundo. Além da bebida, é claro. Mas a bebida é consequencia sempre. Você bebe para celebrar uma mulher, bebe para conquistar uma mulher, bebe para esquecer uma mulher. Mas sem a mulher, o homem não teria criado a bebida.

Novamente o silêncio se fez.

- E digo mais cara! O homem criou a bebida em imagem e semelhança às mulheres! Cerveja, por exemplo. Uma loira de curvas expressivas, não uma cavala, mas vistosa. Do tipo que educa os filhos com uma mão e te faz carinho com a outra.

O silêncio se fez e o motorista despreocupado com a presença do seu cliente continuava aquela conversa privada em voz alta.

- Quanto às morenas eu sempre as vi como o vinho... Aquele emaranhando de cabelo espesso, congruente, vistoso como as uvas que foram sacrificadas para girarem hediondamente em um cálice qualquer. No início elas parecem muito fortes, quase intimidam... Mas quando tua boca se acostuma a elas, é um caminho sem volta.

Indiferente a quietude do passageiro o monólogo continuava uniforme.

- Mas os exemplos anteriores são apenas para mulheres altas. As baixinhas estão em outro parâmetro. As mulheres desafortunadas de altura, para mim, são como whisky sem gelo. Meio copo. Forte e concentrada, te derruba aos pés dela... O gênio de uma mulher que não bate os 1,70m não é de matar? Eu chego a sentir uma dor na minha ponte de safena!

O passageiro que detinha motivos razoáveis para sentir-se incomodado com tamanha espontaneidade, apenas escutava todas analogias com um sorriso fino no rosto.

- Existem ainda outras... Tantas outras... As tatuadas meio maluquinhas com seus piercings brilhando nossa fraqueza, inusitadas e quentes como absinto... Ou ainda as de eterno olhar imaculado, dissimuladas, ingênuas, beirando a tontice e a pureza... Doces e fáceis como uma caipirinha de cachaça. Não me fale de caipirinha com vodka, pois não me apetece e tem também as mulheres de quarenta e poucos anos que são deliciosas como...
- Senhor, ali é minha casa.
- Ah sim... – Como era a primeira vez que o motorista ouvia a voz do franzino passageiro, acanhado limitou-se em dizer-lhe somente o valor da corrida – São 23,00 reais.
- Pronto. Passar bem.
- Você também amigo, tudo de bom e obrigado.

Chegando em casa o delgado rapaz foi recepcionado pelo largo sorriso de sua noiva que apressou-se em lhe contar a grandiosa novidade:

- Fiz uma janta fantástica! Panqueca de ricota com espinafre! Vamos ali no mercado comprar um vinho?

Ele ruminou o assunto por um momento. Cogitou qual bebida haveria de ser sua mulher e rapidamente concluiu que ela só poderia ser algo que fizesse bem, que fizesse falta, que fosse sutilmente indispensável e essencial para tudo.

- Você é água meu amor.

Lhe deu um beijo fervoroso afastando a poeira da rotina.
Aquele foi um dia feliz.

Autoria de Tiago André Vargas
Fotografia de Semenova Irina.

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