sábado, 25 de fevereiro de 2012

Outro café

Faz 3 anos que eu comecei a ganhar bem. Difícil mensurar isso, mas eu sou um homem simples de poucas ambições... Em miúdos, basta um vinho na cabeceira e uma gata se enrolando na cama. Aquelas que comem pele ao invés de ração, mas que vez por outra igualmente acabam com um pêlo na boca, mas não vomitam, tiram com o dedinho disfarçando o nojo para manter o erotismo.
Hoje o vinho que eu bebo é do Porto. Sempre! E a mulher na cama apenas abandonou as vestes por ter gostado da decoração do meu apartamento. Eis minha definição de ganhar bem.
Estou nessa a mais de 3 anos. Não sei bem o que esperar com isso. Mas parece ser a coisa certa a ser feita... Ou talvez seja o efeito do alcoolismo noturno, a revelação do meu verdadeiro ser após o expediente, um bêbado mesquinho que não difere em nada com mendigos suplicantes de moedas para comprarem cachaça... Eu realmente não sei... Talvez a grande obra da minha vida seja fingir e beber. Foda-se.
Mas a história que eu quero contar envolve um ato genuinamente humano: Tomar café fora de casa. Na verdade a única forma que realmente se pode beber café, pois em casa acaba por se tornar o mesmo que lavar pratos, é serviço sujo que precisa ser feito: Vou fazer um café. Vou limpar o sofá. Mesma intensidade.
No entanto sair pela porta tendo a nunca acariciada pelo fulgurar leviano do sol, descer a emperrada maçaneta daquela cafeteria esquecida e ser atingido pelo aroma dos grãos moídos, triturados, queimados, castigados deliberadamente para perfumarem nosso ímpeto. Fantástico.
Mas, não se trata somente do café.
O que comove são as pessoas.
Aquele é um local transitório, uma terra de ninguém. A maioria dos presentes bebem seu café porque foram educados a fazê-lo na primeira hora. Ou combatem o sono. Ou esperançosos buscam ânimo para outra enfadonha jornada de trabalho. Mas o que mais me agrada é que naquela cafeteria que tanto se assemelha a recepção de uma vida que não queremos, todos parecem sinceros. O desânimo contagiado. A cara de sono. A simples indiferença como as notas são lançadas para nunca voltar o devido troco de 5 centavos, quando tudo custa alguma coisa com 95 centavos. Mas ninguém reclama por isso. Nossos aparentes significativos problemas tornam essa moeda tão minúscula que nem enfiada no próprio rabo percebê-la-íamos.
E assim a vida seguia.
Café. Trabalho. Vinho. Sexo.
Algumas vezes eu tento me convencer que as coisas estavam enfadonhas e por isso eu me apaixonei por ela, porém, bastava vê-la para que toda auto-explicação virasse esterco.
Quando Gilda disse que iria se aposentar eu me senti traído, é verdade. Depois destes longos anos sempre fora ela que segurou firmemente o pires e me dava aquele afetuoso bom dia com um olhar de soslaio. A ideia de perdê-la me fazia mal, mais que isso, me atormentava... Não farei um falso discurso dizendo que ela não era uma simples garçonete, pelo contrário, ela era uma simples garçonete e justamente por isso eu a adorava.
Porém o primeiro dia sem ela foi o suficiente.
Tâmela.
Seu próprio nome me remetia a uma fruta de verão, alguma de casca fina e polpa saborosa que fosse impossível comer sem lambuzar não apenas os lábios, mas o queixo. Deus deveria ter criado uma fruta a mais para que pudéssemos colocar nela este nome.
Esta sim posso dizer que não era apenas uma garçonete. Era alguma deusa mitológica reencarnada em corpo delicado que buscava adoração de legiões ou fanáticos, talvez apenas a deste solitário homem que vos escreve, minha confessada esperança.
Não demorou muito para que todas as amigas da minha amiga que conheciam as amigas das já desconhecidas que eu desci as calças lentamente como se estivesse revelando um mundo novo perdessem a graça. Realmente perdessem a graça. Percebi isso no dia que transava com uma assistindo um desenho animado e hoje apenas me lembro dele, não dela.
Contudo não era aquele maldito pinguim de toca tremendo de frio. Era Tâmela. Ela havia enfeitiçado a minha libido, me deixado displicente para todas outras fêmeas que não tinham nome assemelho a uma fruta. E assim ela me envolveu.
Todos os pequenos detalhes se tornaram verdadeiros orgasmos oculares. A maneira como ela pegava o croissant delicada com um guardanapo em volta, enquanto este suspenso no ar pendia levemente sua extremidade flácida para ser largado sobre o pratinho. Ela observando o croissant dentro do micro-ondas queimar enquanto eu a observava dentro daquele uniforme igualmente em chamas.
Marcava a calcinha.
Tanto que era possível ver-lhe os detalhes da renda e às vezes quando se aproximava da janela e a luz diurna batia-lhe em cheio na anca sou capaz de assegurar que decifrava a sua cor, comumente, vermelha.
Engraçado, o uniforme não marcava Gilda. Aquela velha deveria ser mais safada do que imaginava e nem calcinha usava.
A simplicidade como seus cabelos negros caiam sobre os delicados ombros afastavam a minha prepotência e junto com ela até mesmo a minha segurança, não era capaz de me aproximar dela com um humor inteligente, nem debochado, quem dirá romântico. Eu não conseguia ser homem, apenas cliente e para todo sempre assim haveria de ser.
Estava despedaçado.
Todos os dias de manhã comendo aqueles doces com nomes diminutivos, pedindo um por vez apenas para ver ela vir, ir, voltar, retroceder... Enquanto todas suas frases prontas surrupiavam meus sonhos na madrugada, fantasiando atos profanos, pedindo se deveria me lamber com ou sem açúcar, se deveria esquentar um pouco antes ou comeria assim mesmo.
Parei com tudo aquilo. Decidi por fim que de uma forma descente me aproximaria induzindo-a falar algo que não fosse profissional e pragmático, estridente como um ignóbil papagaio que deprime o mundo com sua frase batida enquanto seu dono estufa o peito orgulhoso. Mais alguma coisa?
Resoluto afirmei que naquela manhã, conversaria com ela.
Para uma tristeza inicial seguida de póstumo deleite, ela não estava lá. Mudara de cidade, disse o dono.
Quando a tristeza cogitou tomar-me o peito uma felicidade grotesca invadiu-me por inteiro... Ela sempre seria a Tâmela. Nenhum inevitável evento do fatídico cotidiano a mudaria.
Enquanto todas falsas intelectuais parafraseavam algum cantor de MPB em um jantar com desfecho montado e as permissivas me davam de horário marcado apenas para mostrarem sua nova lingerie a alguém que soubesse elogiá-las, diferente de seus maridos, e os soldados do Porto produziam vinho como escravos para embebedarem todo planeta civilizado que ganha o suficiente para ser arrogante e o dono daquela cafeteria entrevistava uma mulher obesa mãe de 5 filhos para ser a nova garçonete, Tâmela continuava sendo simplesmente Tâmela.
A menina doce arrastando um pano sujo pela mesa.
A menina doce arrastando um sorriso escondido na minha mente. Botão de rosa que jamais será aberto.

Autoria de Tiago André Vargas
Fotografia de Michael.

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