quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Só em silêncio

Logo ela que ficava tão bem com aquele delineador. Logo ela que podava tão bem a sexualidade primata que lhe cercava com seu tom profissional. Tom. Sobre tom. Velho tom. Indiferente tom. Parafraseando, invocando o abjeto.
Logo ela que nasceu para isso. Poderia ser qualquer outra, mas não esta que naturalmente roubou a insensatez masculina no alto dos seus saltos perfurando corações frívolos a cada passada, esguichando sangue pelas calçadas, sempre tão sujas, tão humanas.
Ela nasceu para este mundo, filha predileta, até mesmo durante a indizível afetação que lhe germinou um grito na goela ela estava no seu lugar, mas algo tremeu.
 Então o velho mundo valoroso como um bebê sujo se debatendo nas fraldas por atenção, percebe incrédulo que também fora traído, no exato momento que ela enrugou seus lábios intumescidos de algo brilhoso pedindo por silêncio. E o silêncio se fez.
Sozinha ela desprendeu o cabelo e sentou no azulejo frio da cozinha. Olhou para as paredes e sua coloração que tanto lembrava sorvete de creme, para os quadros que quebravam a imaculada pintura trazendo faces sorridentes que hoje nada lhe diziam.
Seu rosto perro parecia golpeado pelo silêncio. Uma dor boa invadiu seu frágil peito há tanto simulado como algo inquebrantável.
O mundo calado, nenhum ruído.
Nenhum transporte coletivo sucateado gorgolejando sua tristeza, nenhuma criança de nove anos tocando flauta-doce, sequer a estridulação dos grilos machos implorando uma fêmea.
Silêncio.
Tampouco seu coração batia para assegurar a própria vida.
Foi assim, diante completa nulidade com as nádegas frias sobre o piso asquerosamente azul que aquela mulher fez o mundo se calar.
Sitiada então por uma solidão mal trajada que podia surrupiar seus últimos lampejos de amor, só, tão só que seus dedos principiavam virar pó assim ela pode, magicamente, escutar uma voz que vinha por dentro inerente ao mundo.
Ninguém pôde repetir.

Autoria de Tiago André Vargas
Fotografia de theKika.

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