terça-feira, 13 de março de 2012

O marinheiro

Este texto é um trabalho desenvolvido para uma oficina literária, onde após ler as duas primeiras páginas do conto "O marinheiro" de Fernando Pessoa criamos um breve final para a história. Mesmo sem as páginas iniciais do original, o meu desenvolvimento acabou se tornando livre, praticamente uma história a parte mantendo apenas o quadro e o título como elementos base. Este motivo me levou a compartilhar o texto, espero que gostem.



O marinheiro largou sua gorda âncora enquanto segurava rigidamente um semblante de desprezo.
Nunca desembarcara em terras tão tristes.
Havia algo de podre, senil, um pouco de brisa que carregava areia e morte através dos seus cabelos longos que brilhavam. Exceto estes, nada parecia realmente vivo.
Bastou erguer o rosto torturado por sóis de além-mar para avistar uma torre enorme, imponente, parecia ter sido construída por algum povo erradicado a décadas da vida como conhecemos.
No largo peito abrasou-se a intuição que significava algo.
Todos nós sabemos quando significa algo.
Entrou na torre.
Cada degrau avançado naquela escada circular parecia um sonho implorado, um desejo realizado, o último beijo trocado antecedente a tragédia. Olhava para as paredes lisas sem ornamentos, apenas as pedras encaixadas com maestria tal como as aranhas moldam suas vidas em círculos de teias. Apenas estas se ocupavam em decorar o lugar.
Podia-se dizer que tranquilo o marinheiro estava.
Com a mesma destreza que olhava para o horizonte e previa a força de futuros ventos, sabia que nada aconteceria naquele lugar até chegar ao topo.
A torre existe pelo seu topo e nenhuma torre é erguida por nada.
Chegando neste havia uma porta mais convidativa do que imaginava, abriu-a com facilidade, tal como uma garrafa de vinho barato.
Para sua surpresa igualmente nada havia lá.
Malditas terras. Como toda tristeza, também era vazia.
Precisou de um momento a mais para sua perspicaz visão atentar o quadro empoeirado e torto na parede.
Aproximou-se devagar, passo a passo e olhar fixo.
A pintura mostrava um caixão vazio e três donzelas o velando. Velando a quem? Um frio principiado na espinha findou-se na alma do marinheiro quando este percebeu que as três veladoras lhe observavam fixamente, tal faz uma mãe esperando o filho adormecer.
Um quadro de péssimo gosto.
Um motivo a mais para desancorar destas terras insalubres.
Arrancou-o da parede com brutal violência e uma aranha do tamanho de uma mão correu em direção ao teto.
Desceu as escadas correndo. A tranquilidade se fora.
Se havia aprendido algo nestes anos de navegação é que o mar tudo silenciava e o destino do infame quadro que carregava abaixo do ombro não seria outro, afundaria em águas escuras tão profundas que jamais ulterior desafortunado colocaria seus olhos sobre.
A pesada âncora foi erguida.
Velas içadas.
Lentamente o galeão começou se mover.
Quando a torre esmiuçou-se parecendo mais um graveto de pedra o marinheiro concluiu estar longe o suficiente.
Pegou o quadro de olhos fechados sem ousar fitar a pintura e o lançou para o mar. A pesada moldura garantiu que afundasse como uma moeda.
Ergueu novamente o rosto judiado e disse em voz alta para seu único dono, o mar: - Que venham novas terras!

Em póstumo momento houve outros pronunciados:

Primeira Veladora – Percebes o que muda?
Segunda Veladora – Sinto-me numa espécie de parto.
Terceira Veladora – Não sejam estúpidas, o quadro muda, mas nada muda.
Primeira – Sinto-me livre para ser qualquer coisa!
Segunda – Inclusive nada.
Terceira – Somente nada.

Assim que o quadro bateu no fundo do oceano havia algo diferente. Toda tinta havia se desprendido da antiga tela, esvaecendo-se em águas sujas, em escamas limpas, em pedras lisas como seios que somente o fundo do mar poderia conter.
A imagem remanescente era linda.
Por ninguém, jamais, foi vista.

Autoria de Tiago André Vargas
Fotografia de kata0427.

Um comentário:

  1. Muito bacana Tiago.
    Foi uma pena eu não ter participado da primeira Oficina.
    Mas vejo que desde o principio ela está sendo muito produtiva.
    Seus textos são muito bons, não digo como crítica literária mas como leiga
    simplesmente li, fluiu e gostei, ponto, são bons porque me fizeram ler até o final e eu gostei do que li.
    Que venham mais Oficinas e que nos inspirem e faça brotar todas essas maravilhas escondidas em algum lugar de nossa alma.

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