A
insustentável leveza do ser (Editora Nova Fronteira, 1985, tradução de Tereza
B. Caravalho da Fonseca), romance épico de Milan Kundera (1929 – República Checa),
é, principalmente, um mergulho sutil e recôndito sobre as possibilidades dos relacionamentos
amorosos. Seus personagens reúnem a diversidade dos traços humanos despidos, no
segredo que paira no ar quando um corpo é contemplado no espelho, vago
conceito, quem somos? A atmosfera é linda. Tchecoslováquia, 68, invasão Russa,
primavera de Praga. O mundo tentando buscar o mundo, que poderia ser as
pessoas, e as pessoas machucando as pessoas, que poderiam ser o mundo. Positivo,
negativo. Pesado, leve. Há muitas resenhas sobre este livro, mas não sobre o Kitsch, palavra alemã que tem um
conceito fantástico. Segue abaixo transcrição:
(...)
3
Quando
era garoto e folheava o Antigo Testamento para crianças, ilustrado com gravuras
de Gustave Doré, via nele o Bom Deus em cima de uma nuvem. Era um velho senhor,
tinha olhos, um nariz, uma longa barba, e eu dizia a mim mesmo que, como tinha
boca, devia comer. Se comia, devia ter intestinos. Mas essa ideia logo me
assustava, porque, apesar de pertencer a uma família pouco católica, sentia que
havia algo de sacrilégio nessa ideia dos intestinos do Bom Deus.
Sem
o menor preparo teológico, a criança que eu era naquela época compreendia
espontaneamente que existe uma incompatibilidade entre a merda e Deus, e, por
dedução, percebia a fragilidade da tese fundamental da antropologia cristã,
segundo a qual o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Das duas uma:
ou o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus – e então Deus tem
intestinos - , ou Deus não tem intestinos e o homem não se parece com ele.
Os
antigos gnósticos pensavam tão claro como eu aos cinco anos. Para resolver esse
maldito problema, Valentino, Grão-Mestre da Gnose do século II, afirma que
Jesus “comia, bebia, mas não defecava”.
A
merda é um problema teológico mais penoso que o mal. Deus dá liberdade ao homem
e podemos admitir que ele não seja o responsável pelos crimes da humanidade.
Mas a responsabilidade pela merda cabe inteiramente àquele que criou o homem,
somente a ele.
4
No
século IV, São Jerônimo rejeitava categoricamente a ideia de que Adão e Eva
tivessem tido relações sexuais no Paraíso. João Escoto Erígena, ilustre teólogo
do século IX, ao contrário, admitia essa ideia. Mas, segundo ele, Adão podia
levantar seu membro mais ou menos da mesma forma que levantamos um braço ou uma
perna – portanto, quando quisesse e como quisesse. Não procuremos nessa ideia o
eterno sonho do homem obcecado pela ameaça da impotência. A ideia de Escoto
Erígena tem outro significado. Se o membro viril pode se levantar por uma
simples injunção do cérebro, presume-se que a excitação não é necessária. O
membro não se levanta porque estamos excitados, mas porque lhe damos uma ordem.
O que o grande teólogo achava incompatível com o Paraíso não era o coito, nem a
volúpia a ele associada. O incompatível com o Paraíso era a excitação.
Guardemos bem isto: no Paraíso existia volúpia, mas não existia a excitação.
Pode-se
encontrar no raciocínio de Escoto Erígena a chave de uma justificativa
teológica (ou teodicéia) para a merda. Enquanto foi permitido ao homem
permanecer no Paraíso, ou (como Jesus, segundo Valentino) ele não defecava, ou –
o que parece mais provável – a merda não era considerada uma coisa repugnante.
Ao expulsar o homem do Paraíso, Deus revelou-lhe sua natureza imunda e
repulsiva. O homem passou a esconder aquilo que o envergonhava, e, no momento
em que afastava o véu, era ofuscado por uma grande claridade. Assim, logo após
ter descoberto a imundície, descobriu também a excitação. Sem a merda (no
sentido literal e figurado da palavra), o amor sexual não seria como o conhecemos:
acompanhado por um martelar do coração, e pela cegueira dos sentidos.
(…)
5
O
debate dos que afirmam que o universo foi criado por Deus e aqueles que pensam
que o universo apareceu por si mesmo implicam em coisas que vão além da nossa
compreensão e experiência. Muito mais real é a diferença entre aqueles que
contestam a existência tal como foi dada ao homem (pouco importa como e por
quem) e aqueles que aderem a ela sem reservas.
Por
trás de todas as crenças européias, sejam religiosas ou políticas, está o
primeiro capítulo de Gênese, a ensinar que o mundo foi criado como devia ser,
que o ser humano é bom e que, portanto, deve procriar. Chamemos essa crença
fundamental de acordo categórico com o
ser.
Se,
ainda recentemente, a palavra merda era substituída nos livros por reticências,
isso não se devia a razões morais. Afinal de contas, não se pode considerar que
a merda seja imoral! A objeção à merda é de ordem metafísica. Defecar é dar uma
prova cotidiana do caráter inaceitável da Criação. Das duas uma: ou a merda é
aceitável (e, nesse caso, não precisamos nos trancar no banheiro), ou Deus nos
criou de maneira inadmissível.
Segue-se
que o acordo categórico com o ser tem
por ideal um mundo no qual a merda é negada e no qual cada um de nós se
comporta como se ela não existisse. Esse ideal estético se chama kitsch.
Esta
é uma palavra alemã que apareceu em meados do sentimental século XIX e que, em
seguida, se espalhou por todas as línguas. O uso repetido da palavra fez com
que se apagasse o seu sentido metafísico original: em essência, o kitsch é a negação absoluta da merda;
tanto no sentido literal quanto no sentido figurado: o kitsch exclui de seu campo visual tudo que a existência humana tem
de essencialmente inaceitável.
6
A
primeira revolta interior de Sabina contra o comunismo não tinha uma conotação
ética, mas estética. O que a repugnava não era tanto a feiúra do mundo
comunista (os castelos convertidos em estábulos), mas a máscara de beleza com
que ele se disfarçara, isto é, o kitsch
comunista. O modelo desse kitsch era
a chamada festa de 1º de maio.
Tinha
assistido aos desfiles de 1º de maio numa época em que as pessoas ainda estavam
entusiasmadas, ou ainda faziam força para dar essa impressão. As mulheres
vestiam blusas vermelhas, brancas ou azuis, e, vistas das varandas e das
janelas, formavam os mais diversos motivos: estrelas com cinco pontas,
corações, letras. Entre os diferentes setores do desfile, avançavam pequenas
orquestras que davam o ritmo da marcha. Quando o cortejo passava diante da
tribuna oficial, mesmo as fisionomias mais taciturnas se abriam num sorriso,
como se quisessem provar que estavam alegres como deviam, ou, mais exatamente,
que estavam de acordo com o que delas
se esperava. Não se tratava de um simples acordo político com o comunismo, mas
sim de um acordo com o ser enquanto tal. A festa do 1º de maio abastecia-se na
fonte profunda do acordo categórico com o
ser. A palavra de ordem tácita e não escrita do desfile não era “Viva o
comunismo!”, mas sim “Viva a vida!”. A força e a astúcia da política comunista
foi ter se apossado dessa palavra de ordem. Era precisamente essa estúpida
tautologia (“Viva a vida!”) que levava ao desfile comunista pessoas
completamente indiferentes às ideias comunistas.
7
Uns
dez anos mais tarde (ela já morava na América), um senador americano amigo de
seus amigos levou-a a passear em seu enorme automóvel. Quatro garotos estavam
sentados no banco de trás. O senador parou; as crianças saíram e começaram a
correr em um gramado imenso, em direção a um estádio onde havia uma pista de
patinação no gelo. O senador ficou ao volante olhando com ar sonhador as quatro
pequenas silhuetas que corriam; virou-se para Sabina: - Olhe para eles! –
disse, fazendo com a mão um gesto amplo que abrangia o estádio, o gramado e as
crianças. – É isso que eu chamo de felicidade.
Essas
palavras não eram apenas uma expressão de alegria diante das crianças que
corriam e da grama que crescia, era também uma manifestação de compreensão em
relação a uma mulher que vinha de um país comunista em que – o senador estava convencido
– a grama não cresce e as crianças não correm.
Nesse
momento, Sabina imaginou o mesmo senador no palanque de uma praça de Praga. Em
seu rosto havia exatamente o mesmo sorriso que os estadistas comunistas, do
alto de seus palanques, dirigiam aos cidadãos igualmente sorridentes, que
desfilavam aos seus pés.
8
Como
podia este senador saber que crianças significavam felicidade? Enxergaria
dentro de suas almas? E se três dessas crianças, quando saíssem do seu campo
visual, se atirassem sobre a quarta, esmurrando-a?
O
senador tinha apenas um argumento a favor de sua afirmação: a sensibilidade.
Quando o coração fala, não é conveniente que a razão faça objeções. No reino do
kitsch, impera a ditadura do coração.
É
preciso evidentemente que os sentimentos suscitados pelo kitsch possam ser compartilhados pelo maior número possível de
pessoas. Portanto, o kitsch não se
interessa pelo insólito, ele fala de imagens-chave, profundamente enraizadas na
memória dos homens: a filha ingrata, o pai abandonado, os garotos correndo na
grama, a pátria traída, a lembrança do primeiro amor.
O
kitsch faz nascer, uma após outra,
duas lágrimas de emoção. A primeira diz: como é bonito crianças correndo no
gramado!
A
segunda lágrima diz: como é bonito ficar emocionado, junto com toda humanidade,
diante de crianças correndo no gramado!
Somente
essa segunda lágrima faz com que o kitsch
seja o kitsch.
A
fraternidade entre todos os homens não poderá nunca ter outra base senão o kitsch.
(...)
26.09.2015
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Cena do filme The Unbearable Lightness of Being (1988), com os personagens de Tereza, Tomas e o cão Karenin. |